O espírito do Natal futuro

A mensagem de Natal do primeiro-ministro é mais reveladora pelo que não diz do que pelo que optou por dizer.

António Costa saiu de São Bento e foi gravar a sua mensagem de Natal a um jardim-de-infância. Falou durante cinco minutos, começando naturalmente pela educação dos mais novos. Mas passou pela qualificação dos adultos, pelo combate à pobreza, pelo emprego e pelas empresas, também pela emigração e retenção de talentos, acabando na requalificação dos serviços públicos. São cinco minutos, sublinhe-se, sem nada de especial — que depois foram analisados e reanalisados nas televisões, à procura do detalhe que pudesse acrescentar alguma coisa.

O mais relevante, porém, não é o que António Costa disse — mas o que não disse. E desta vez o primeiro-ministro não falou de contas, não falou de Orçamento, não falou da Europa ou da troika ou da austeridade. De resto, na conversa natalícia de Costa não houve oposição, não houve parceiros de acordo político. E mal houve passado. Não admira, portanto, a dificuldade em encontrar matéria para comentário político: Costa não fez um discurso tradicional, quis virar a página.

A escolha de um cenário diferente, a ausência no discurso da política partidária ou de referências aos constrangimentos que têm perseguido o país de há sete anos para cá não são coincidência. Há meses que António Costa promete ao país uma vida em normalidade, sem o "constante sobressalto" de quem olha para os próximos números do INE, da Direcção-Geral do Orçamento ou de Bruxelas. Há meses que fala da estabilização do sistema financeiro, da boa relação com Bruxelas. Há meses que o diz, sem que a realidade do dia-a-dia lhe conceda essa nova vida.

Para Costa, 2017 tem de ser o ano. Em que o Governo deixa definitivamente a agenda da urgência orçamental, da qual sempre tentou escapar. Porque só assim pode deixar o campo de batalha mais confortável para a direita — e só assim ganhará espaço para fazer o seu PS crescer ao centro, que é onde se ganham eleições. Com a ideia de um Governo pragmático, com projecto político para além do défice ou da mera reposição de rendimentos (que é ideia curta, porque toda ela transpira a contas apertadas).

Percebe-se, por isso, o objectivo de António Costa: aproveitar o facto, muito provável, de Portugal sair finalmente do Procedimento de Défices Excessivos, de sair do radar, e normalizar o discurso. Mas claro que Costa sabe que, para que o discurso tenha adesão à realidade, para que o fantasma das contas passadas não volte, precisa que os números de Centeno continuem a bater certo, que a Comissão e a DBRS acreditem e que o BCE ajude. O problema dos discursos é esse mesmo: não basta um Natal para resolver os problemas do mundo.

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