O “Brexit” que ainda não aconteceu mas já se faz sentir

Seis meses depois do referendo e três antes da data prevista para o arranque das negociações, tudo está em aberto sobre moldes do Brexit. Mas no país e na UE muito começou a mudar

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O caminho para a saída da UE é tão labiríntico que há quem acredite que nunca se chegará lá Daniel Leal-Olivas

O futuro do Reino Unido foi carimbado na madrugada de 24 de Junho, quando os resultados do referendo à União Europeia revelaram aquilo que ninguém no continente queria acreditar, que um país deixaria voluntariamente a comunidade erguida das cinzas da II Guerra Mundial e por causa dela. Para os britânicos, que nunca viram a UE como um projecto político mas lhe reconheciam a mais-valia económica, a livre-circulação tornou-se demasiado incómoda, a regulamentação comunitária demasiado pesada, a ingerência de Bruxelas demasiado asfixiante – ou nada disso, na verdade, tanta foi a desinformação que dominou a campanha eleitoral.

Mas nos dias seguintes, entre a euforia dos que votaram para sair e o choque dos que queriam ficar, uns e outros perceberam que a porta de saída da UE estava mais longe do que a retórica política fazia crer. E o caminho é tão labiríntico que há quem, em Londres e Bruxelas, acredite que nunca se chegará lá. A primeira-ministra britânica prometeu accionar a cláusula de saída até ao final de Março, remetendo o “Brexit” para a Primavera de 2019, mas a realidade não esperou o desfecho do referendo está já a ter impacto – tanto no Reino Unido como (ou talvez sobretudo) na relação entre Londres e os restantes Estados-membros.

Na UE fala-se já em “nós e eles”

O vídeo, gravado na abertura da última cimeira europeia, a 16 deste mês, correu mundo e sintetiza em 30 segundos a frieza instalada entre Londres e os outros 27 países da UE: no início da reunião, enquanto os outros líderes se cumprimentam efusivamente, May, visivelmente desconfortável, olha para um lado e para outro sem encontrar ninguém a quem dirigir a palavra. Foi o seu segundo Conselho Europeu desde que, em Julho, sucedeu a David Cameron na chefia do Governo, depois de não ter sido convidada para a cimeira informal de Bratislava, em Setembro, em que a UE tentou mostrar-se unida e determinada na reacção ao “Brexit”.

Mantendo-se firme no princípio de nada negociar antes de Londres accionar o artigo 50, a UE tem relegado o tema do “Brexit” para o fundo da agenda – nas duas reuniões, May teve breves minutos para fazer um ponto da situação e em ambas as vezes a sua intervenção foi recebida em silêncio. “Acho que é melhor sair agora”, terá dito a primeira-ministra, segundo o jornal The Times, antes de deixar a última cimeira para permitir que os restantes líderes discutissem pormenores técnicos das negociações que se avizinham.

Episódios que mostram que, embora continuando membro de pleno direito da UE até à saída, a decisão de deixar a comunidade criou uma realidade – verdadeira para os dois lados do canal da Mancha – em que se fala já de “nós” e de “eles”. Um discurso que responde aos preparativos necessários para as épicas negociações que se avizinham, mas que resulta também de incompreensões mútuas e da frustração com as posições assumidas pelo Governo britânico – irrealistas aos olhos dos 27.

Um momento decisivo para o azedar das relações foi o congresso do Partido Conservador, no início de Outubro. May assegurou que não vai prescindir de controlar a imigração quando o país sair da UE e a ministra do Interior, Amber Rudd, indispôs mesmo os seus correligionários ao propor que as empresas fossem obrigadas a revelar quantos estrangeiros empregam. Londres recusa, contudo, assumir a sua preferência por um “hard Brexit”, dizendo apenas que quer “o melhor acordo possível” e que tudo fará para garantir o acesso das empresas ao mercado único.

A UE tem-se mantido inamovível – se não aceitar a livre de circulação de pessoas, o Reino Unido ficará fora do mercado único –, num consenso que não é quebrado mesmo pelos Estados mais próximos de Londres, caso da Polónia (preocupada com os 800 mil polacos a viver no país) ou da Holanda (que vê na resposta dura a Londres como antídoto para ameaça eleitoral dos eurocépticos). O Governo britânico acredita que mais tarde ou mais cedo a UE cederá – a Alemanha tem de vender BMWs e Itália o seu prosecco, disse o chefe da diplomacia, Boris Johnson, num comentário que enfureceu os congéneres – e vários diplomatas acreditam que o pragmatismo vai prevalecer quando as negociações começarem. O risco, disse ao Guardian Norbert Röttgen, um aliado da chanceler alemã Angela Merkel, é que “os dois lados se entrincheirem nas suas posições ainda antes de o artigo 50 ser invocado”, azedando o clima das negociações.

Intolerância aumenta

“O ódio contra qualquer comunidade, raça ou religião não tem lugar numa sociedade diversa”, disse a ministra do Interior no lançamento do plano de acção contra os crimes de ódio, em resposta aos números alarmantes recolhidos pela polícia e ONG após o referendo. Segundo o seu ministério, só em Julho foram registados quase 5500 crimes deste género no país (80% por motivos raciais ou religiosos), um aumento de 41% face ao mesmo mês de 2015. As denúncias abrandaram nos meses seguintes, mas o país teve de habituar-se a conviver com as notícias sobre insultos nas ruas, mensagens racistas deixadas em caixas de correio e até agressões, a mais grave das quais o espancamento até à morte de um imigrante polaco, em Agosto.

O referendo não criou a intolerância – nos 12 meses até Março, estes crimes aumentaram 19% em relação ao ano anterior – mas poucos duvidam que a campanha para o referendo libertou demónios. “Se querem ganhar isto, têm de atingir Cameron e [o ministro das Finanças, George] Osborne na cabeça com um bastão de basebol onde esteja escrita a palavra imigração”, disse Michael Cummings, director da campanha pelo “Brexit”, numa reunião com Boris Johnson, segundo a reconstituição dos momentos decisivos da caminhada para o referendo feita pelo jornal Financial Times.

A retórica anti-imigração, que era reduto de Nigel Farage e do partido populista UKIP – que marcou a campanha com um infame poster em que se mostrava uma multidão de refugiados a caminho da Europa – contaminou toda a ala eurocéptica, com o apoio da imprensa tablóide. E a vitória do “Brexit” “deu a algumas pessoas a impressão de que não deviam ter já vergonha de manifestar o ódio racial que há muito sentiam”, disse ao Independent Priska Komaromi, investigadora e responsável de um site que reúne dados sobre crimes raciais no Reino Unido. Uma sondagem divulgada esta semana pelo instituto Ipsos revela que a imigração já não é a principal preocupação dos britânicos (os termos em que ocorrerá o “Brexit” lideram agora), mas a recusa do executivo em dar como garantido o estatuto dos europeus que já vivem no país e a futura negociação sobre a livre circulação não potenciam um clima de maior tolerância.

Nuvens negras no horizonte

É, para já, um dos efeitos menos visíveis do referendo mas os economistas garantem que os britânicos não tardarão a senti-lo na carteira. Contrariando as perspectivas sombrias de Osborne, que alertara para uma recessão iminente, a economia britânica fecha o ano a crescer, o desemprego mantém-se baixo, o principal índice da bolsa está próximo do seu nível mais alto, o consumo das famílias aumentou.

Mas a desvalorização da libra, que nas semanas seguintes ao referendo atingiu valores mínimos em 30 anos, tanto favorece as exportações como pressiona a inflação e as últimas notícias não são animadoras: os preços subiram em Novembro ao ritmo mais acelerado dos últimos dois anos e o Banco de Inglaterra prevê que a inflação atinja os 2% em 2017. A instituição reviu já em baixa o crescimento para o próximo ano (de 2,2% para 1,4%) e os inquéritos às empresas revelam que muitas estão a reduzir os seus planos de investimento, o que ameaça o emprego, escreveu o Wall Street Journal. “A minha suspeita é que as notícias não vão ficar melhores”, escreveu no Guardian David Blancheflower, do Comité de Política Monetária do banco central britânico.

Partido único?

Em Setembro, a revista Economist lançava uma provocação a Jeremy Corbyn, o líder dos trabalhistas prestes a ser reeleito apesar de renegado pela maioria dos seus deputados, dizendo que a colagem do partido à sua esquerda ameaça torná-lo irrelevante, deixando os conservadores sem uma oposição credível. As sondagens dos últimos meses mostram que o fosso entre os dois partidos está a níveis quase recorde – 16 pontos segundo um estudo do ICM em Novembro.

As cisões no Partido Conservador entre os “brexiters” e os apoiantes da permanência não desapareceram, e prometem muitas dores de cabeça a May quando finalmente apresentar os seus planos para as negociações com a UE, mas a estratégia do Labour para o “Brexit”não é mais clara – opõe-se à saída do mercado único, mas reconhece que terá de haver limites à livre circulação. E pela frente tem um UKIP que ameaça tomar o seu lugar como partido dos trabalhadores e os liberais-democratas, que se assumem agora como o partido dos 48% que votaram pela permanência na UE. Os analistas admitem que May poderá ser tentada a antecipar as legislativas, prevista para 2020, se sentir necessidade de reafirmar a sua legitimidade para concretizar o "Brexit" e, nesse cenário, as previsões da Economist podem ficar mais próximas de ser cumpridas.

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