E se na escola Maria pede para ser tratada por Manuel?

Associação quer que escolas aceitem mudança de nomes de crianças transsexuais. Ministério da Educação está a analisar a proposta.

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Associação recebeu apelo de rapaz de 15 anos que pediu à escola para ser tratado pelo nome masculino, embora tenha nascido rapariga Enric Vives-Rubio

A Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual (AMPLOS) propôs ao Ministério da Educação que as crianças transgénero possam usar, em ambiente escolar, um nome que esteja de acordo com o género com o qual se sentem identificadas, diz a sua presidente, Margarida Faria. Ao PÚBLICO o ministério faz saber que a proposta está a ser analisada em conjunto com o gabinete da secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade.

As crianças transgénero são aquelas cuja identidade de género — a identificação psicológica enquanto menino ou menina  — não corresponde ao sexo que lhes foi atribuído à nascença. Em 2013, a Alemanha tornou-se o primeiro país europeu onde é mesmo possível inscrever no bilhete de identidade de uma criança uma terceira opção para além de “feminino” ou “masculino”: “sexo indefinido”.

Em Portugal, o último apelo que chegou à AMPLOS, associação vocacionada para dar apoio a pais neste tipo de situações, veio de um rapaz de 15 anos. Pediu à escola para passar a ser tratado por um nome masculino, embora “oficialmente” tenha nascido do sexo feminino. Nesta decisão não foi apoiado pela mãe. “Ele teve a coragem de se apresentar à escola, a escola deveria reconhecê-lo”, defende a responsável da associação.

A lei portuguesa apenas permite a mudança de identidade civil a partir dos 18 anos (no ano passado 70 adultos alteraram o sexo nos seu documentos de identificação). Existem actualmente duas propostas de lei sobre identidade de género, uma do Bloco de Esquerda, outra do PAN-Pessoas-Animais-Natureza, no sentido de fazer descer esta idade para 16 anos. A proposta do BE contempla mesmo a possibilidade de mudança de identidade civil para crianças, mas fá-lo “muito timidamente”, considera a responsável da AMPLOS.

Contudo, explica, a questão da identidade de género manifesta-se ainda na infância. “As pessoas transsexuais sabem que são do género oposto com quatro, cinco anos; o que não acontecia dantes era a liberdade de virem falar de si próprios no espaço público”, prossegue Margarida Faria. “Há crianças que já têm essa situação muito resolvida e têm de viver com o nome do género errado até aos 16 ou 18 anos, o que é muito complicado.”

São vários os pais “de crianças de expressão de género não binário” a pedir apoio, tanto que criaram um núcleo para a infância com uma página específica no Facebook da associação (Espelho Eu).

Verbalizar aos sete anos

A verbalização perante os pais pode acontecer aos sete anos, de forma clara. A partir desta idade há crianças aptas a fazer a sua transição social, diz Margarida Faria, assumindo-se com o género com o qual se identificam, razão pela qual a AMPLOS entende que os registos escolares deviam ter o nome da criança ajustado. “Isso é fundamental para a sua auto-estima e para a sua integração social.”

No final de Novembro a AMPLOS entregou ao Ministério da Educação a “Proposta de Adopção de Medidas nas Escolas face à Diversidade de Expressão e Identidade de Género na Infância”, na qual reitera que, mesmo não sendo ainda possível às crianças mudar de nome no registo civil, é importante que sejam aprovados procedimentos para serem usados de forma uniforme em todas as escolas, permitindo que as crianças possam usar em ambiente escolar o nome ajustado à sua identidade de género. “Seria o primeiro passo. Já seria muito importante que a escola reconhecesse e que saiba o que são crianças ‘trans’, que se arranjasse meios para ouvir os miúdos, mesmo quando não são aprovados pelos pais.”

“Temos várias famílias nesta situação”, conta ainda. Neste momento, há pais de menores que têm de ir às escolas pedir para os filhos usarem o nome do “género sentido”, mas tudo depende “da abertura e boa vontade” da escola. Margarida Faria diz que “é da maior urgência uma medida definida pelo Ministério da Educação a ser cumprida pelos agrupamentos escolares, independentemente da boa vontade”. Lembra por fim que há alguns países a permitir a mudança de nome ainda na infância (como Argentina, Malta e Noruega) e recorda o caso de uma mãe mexicana que teve de ir para tribunal para conseguir a mudança de nome da filha, quando esta tinha 9 anos.

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A capa da edição de Janeiro da National Geographic que está a provocar polémica ROBIN HAMMOND/National Geographic

National Geographic dá capa a menina transgénero

Mais recente é a polémica em torno da revista norte-americana National Geographic. Para o seu número de Janeiro quis fazer história escolhendo a imagem de uma criança transgénero, uma menina americana que nasceu oficialmente rapaz. Avery Jackson, a criança de nove anos do Kansas (EUA), diz orgulhosamente que a melhor coisa de ser rapariga “é não ter de fingir que é um rapaz”.

O número temático dedicado à “revolução do género” tem suscitado debate nos últimos dias e até levou a directora revista, Susan Goldberg, a ter de explicar porque escolheram aquela imagem de capa.

“Desde que partilhamos a nossa capa, milhares de pessoas deram-nos as suas opiniões, que foram desde a expressão de agradecimento e orgulho até manifestações de fúria. Vários garantiram que iam cancelar as suas subscrições da revista”, admitiu.

“Estes comentários são uma pequena parte de uma discussão muito profunda que está a decorrer sobre as questões de género." Num dos artigos deste número, para o qual foram visitadas crianças em vários países do mundo, Avery apresenta-se “como uma rapariga abertamente transgénero desde os cinco anos”, que conta com apoio dos pais que nada sabiam sobre o tema até se verem confrontados com ele.

O fotógrafo da National Geographic Robin Hammond foi a 80 casas de crianças de nove anos em quatro continentes, do Brasil à China, convidando-as a explicar o que significa para cada uma delas ser rapaz ou rapariga, que vantagens ou desvantagens tem, que expectativas têm em relação ao seu futuro, o que as faz felizes. Mas foi a escolha da fotografia de capa que mais polémica causou.

A directora da revista diz que Avery “exprime a complexidade da conversa que está a decorrer actualmente em torno das questões de género". "Hoje já não falamos apenas em papéis de género de rapazes e raparigas, falamos sobre a necessidade de compreender a evolução em torno do espectro de género."

“Todas as fotografias das crianças são belas. Mas gostamos especialmente da imagem de Avery – forte e orgulhosa. Pensamos que resume bem o conceito de ‘revolução de género’.”

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