Tudo está mal quando acaba mal: o Teatro da Cornucópia vai mesmo encerrar

Posta de lado pelo ministro da Cultura a hipótese de criar um estatuto de excepção para evitar o anunciado encerramento da companhia, os directores Luis Miguel Cintra e Cristina Reis reiteram que esta se dissolverá “nos próximos dias” – e que já não era dessa luta que se tratava.

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A mediática aparição de Marcelo Rebelo de Sousa no Teatro do Bairro Alto não foi suficiente para reverter a decisão da Cornucópia NUNO FERREIRA SANTOS

Nove parágrafos para acabar com “a lamentável confusão gerada nos órgãos de comunicação social pela inesperada visita do Presidente da República” – e, a reboque deste, do ministro da Cultura – ao Teatro do Bairro Alto, no sábado, para impedir in extremis o encerramento do Teatro da Cornucópia, nove parágrafos para acabar com equívocos, para que não restem dúvidas de que o fim chegou mesmo: “O Teatro da Cornucópia acaba no princípio do ano, na realidade já acabou.”

Em comunicado enviado esta tarde às redacções, e publicado no site da Cornucópia, os dois directores desta companhia de referência do teatro português, o actor e encenador Luis Miguel Cintra e a cenógrafa Cristina Reis, explicam por que razão não podem continuar a assegurar o normal funcionamento da companhia e deixam bem claro que a agenda da próxima reunião que terão com o Ministério da Cultura (MC) não inclui quaisquer planos de manter o grupo do Teatro do Bairro Alto em actividade.

Não está em causa, como foi entendido por muitos, incluindo o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, a possibilidade de a Cornucópia voltar atrás na decisão de pôr um fim no seu percurso de 43 anos e mais de 120 produções. Tal como não esteve em causa, ao que parece, qualquer intenção de pressionar o Governo a criar para a companhia um estatuto de excepção que a isentasse dos concursos e das outras formalidades que anualmente tem de cumprir para poder beneficiar dos apoios públicos à criação e à produção.

“Não se tratará, portanto, agora de um estatuto de excepção, porque somos provavelmente excepção. A empresa dissolve-se nos próximos dias, dependendo apenas de procedimentos legais que terá de cumprir”, continua o comunicado. “Às pessoas que elegemos para nos governarem e que se dispõem a ouvir-nos, não nos passa pela cabeça mentir. Para com eles, para com todos, mantivemos sempre as mais leais relações.”

Horas antes do envio deste comunicado, o ministro interviera no Fórum que a TSF dedicou à situação da Cornucópia para afastar em termos bastante categóricos aquela que nos últimos dias se especulou poder ser a última, e a única, via para a continuidade da companhia – e que no sábado, em pleno Teatro do Bairro Alto, o próprio admitira ao PÚBLICO poder vir a contemplar no âmbito do novo modelo de financiamento às artes que está agora em estudo e deverá entrar em vigor no próximo ano. “Criar a [figura das] companhias que, pela sua grande qualidade histórica, teriam um estatuto diferenciado e não teriam de se apresentar a concurso… Não é essa a nossa ideia”, disse o ministro aos microfones da rádio, para a seguir sublinhar: “Não nos parece que em termos jurídicos e de direito seja uma boa ideia.”

O passo que há dias Castro Mendes dissera estar-se “a discutir” parece ter deixado, portanto, de estar em cima da mesa. E também a Cornucópia diz agora já não ser dessa luta que se tratava. Na sessão de sábado, e depois do mediático encontro a três partes promovido por Marcelo Rebelo de Sousa, Cintra chegou a referir que em 2015 endereçara um pedido nesse sentido ao anterior secretário de Estado da Cultura: “Caiu em saco roto. Vou agora fazer a outro ministro a mesma sugestão?”, perguntou então aos jornalistas que o rodeavam, antes daquele que terá sido o derradeiro espectáculo da companhia.

“Situação-limite”

No comunicado que ontem enviaram às redacções, Luis Miguel Cintra e Cristina Reis esclarecem também que, ao longo de vários anos, afirmaram e reafirmaram à tutela que as verbas que lhes iam sendo regularmente concedidas pelo Estado no âmbito dos concursos de apoio sustentado não lhes permitiam manter o projecto. Nos três últimos anos, o “valor visivelmente insuficiente” do apoio (à Cornucópia foi atribuído um subsídio de 309 mil euros/ano para o quadriénio 2013-2016) obrigou a companhia a reajustar os seus métodos de produção e a própria programação.

Para se manter em actividade, a estrutura argumenta ter tido de contar com o apoio pontual da Câmara Municipal de Lisboa e dos Amigos da Cornucópia. Ainda assim, a situação era difícil e a direcção chegou mesmo a equacionar não cumprir o quarto ano já contratualizado com a DGArtes. Acabou por fazê-lo, diz, mas em esforço. Este ano, e além do recital com que se despediu dos muitos espectadores que lotaram a sala do Teatro do Bairro Alto no sábado, a Cornucópia estreou duas co-produções: a ópera Dialogues des Carmélites, com o Teatro Nacional de São Carlos, e Música, de Frank Wedekind, com o São Luiz.

Agora, a companhia diz estar perante “a evidência da situação-limite” das suas possibilidades e ser portanto incapaz “de assegurar neste quadro de financiamento, o cumprimento de novos projectos”, considerando “incontornável o fecho da empresa Teatro da Cornucópia”.

A decisão, precisam Cintra e Reis, fora já comunicada informalmente ao secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, no final de Outubro. Foi nessa reunião que a direcção da companhia manifestou a sua preocupação com o pagamento de indemnizações aos trabalhadores e com a preservação do património reunido ao longo de quatro décadas no Teatro do Bairro Alto, assim como o seu desejo de ver o edifício que têm vindo a ocupar permanecer afecto a uma actividade cultural.

O MC já garantiu, para esse efeito, mas também para salvaguarda do “Património Histórico – tangível e intangível (…) – que a companhia deixa para o teatro português”, que irá assegurar o aluguer do edifício do Teatro do Bairro Alto “por um período de mais um ano, de modo a que o processo de encerramento, e todos os trabalhos que daí decorrem, seja realizado nas devidas condições”.

O pagamento dessa renda – que o Estado assume ininterruptamente desde 1975 e que actualmente ascende aos seis mil euros mensais – está entre as razões pelas quais Castro Mendes reafirmou no sábado, prestes a despedir-se da Cornucópia, que o tratamento dado à companhia “sempre foi especial”, atendendo à singularidade do seu percurso. “Não existem outras estruturas às quais o Estado garanta despesas regulares de arrendamento de espaço”, precisou ontem o gabinete do ministro em esclarecimento enviado ao PÚBLICO. O estatuto excepcional do Teatro da Cornucópia permitiu-lhe ainda receber “em 2013, no âmbito dos 40 anos da companhia, e em 2015, para a edição do catálogo Teatro da Cornucópia – Espectáculos de 2002 a 2016, [apoios] através do Fundo de Fomento Cultural, nos valores de 100 mil euros e de 75 mil euros, respectivamente”. 

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