Coliseu do Porto, celebração e mudança

Há dias o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes afirmou que “o Estado não deixará cair o Coliseu”. A Cidade também não.

Inaugurado há 75 anos, no dia 19 de Dezembro de 1941, o Coliseu Porto é hoje um símbolo universalizante da Cidade, porque se afirma como sala de espectáculos histórica em consonância com uma arquitectura de excelência e pioneira.

O Coliseu tem que comunicar consigo e com a realidade da qual faz parte com uma linguagem actual. Tinha e tem que se tornar contemporâneo, saber interpretar confluências, ajudar a construir o presente no plano da música e da oferta cultural, mas também ganhar um recuo crítico face à glorificação estética desse mesmo presente. Para poder dar a viver formas do tempo.

Num momento em que no Porto a Cultura passou a dignificar a Política, o Coliseu precisava de uma visão política, de participação e de discussão. E de se reorientar, no espaço simbólico e no conjunto dos equipamentos culturais numa lógica de complementaridade, valorizando a sua capacidade para prestar um serviço público. De ser inclusivo, multigeracional, não hegemónico, de encontro a uma heterotopia (como reivindica o filósofo Michel Foucault).

O edifício da Rua Passos Manuel está desde sempre ancorado numa ética e numa estética. Mas com o passar do tempo começou a ficar ultrapassado por uma nova realidade urbana e social. Na nova dinâmica entretanto criada neste tecido, a Cultura foi eleita como um factor essencial de enriquecimento e desenvolvimento. E enquanto isso, a sua maior casa de espectáculos estava arredada da nova geografia dos palcos. No final de 2014, na ausência reiterada de qualquer proposta ou iniciativa interessada em assumir os destinos do Coliseu, os principais responsáveis públicos envolvidos na sua gestão – A Câmara Municipal do Porto, a Área Metropolitana do Porto e o Estado – promoveram uma solução directiva na qual o presidente da autarquia, Rui Moreira e o então vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva, se envolveram de forma particularmente lúcida, empenhada e comprometida. E o Coliseu foi desafiado a crescer. A crescer com base em novos valores, sem deixar de preservar os seus princípios de sempre: a liberdade, a tolerância, a independência.

De imediato foi necessário elaborar um diagnóstico. E inverter o curso dos acontecimentos. Definir uma contenção sem miserabilismo. Racionalizar despesas e em simultâneo valorizar a marca Coliseu e o seu património. Sobretudo era imperativo definir uma estratégia e um projecto. Era urgente devolver o Coliseu à Cidade, às pessoas, aos públicos, aos artistas, ao mundo dos negócios do entretenimento e dos conteúdos musicais…. Mas neste particular sem permitir que a maior sala da Cidade e da região tivesse uma atitude passiva, subserviente.

Pensar o Coliseu hoje é contextualizar o palco e o ecrã onde desfilaram protagonistas e imagens míticas, exemplo maior de que a cultura é entretenimento e o entretenimento se faz cultura, num processo de liquidificação sociológica que nestes anos mais recentes o Porto exemplarmente tem experimentado. Logo no início da sua vida, este Coliseu é o resultado da acção empreendedora de mentalidades cosmopolitas, cientes do valor da iniciativa privada, da necessidade de ver e de compreender. É de elementar justiça evocar o acto fundador, com Joaquim José de Carvalho (e outros “homens bons da cidade”) e a Companhia de Seguros Garantia. Não se trata aqui de fazer historiografia, nem de fixar uma cronologia, ou de propor um exercício memorialista. A narrativa é conhecida, mas faz falta um ensaio histórico rigoroso e cientificamente relevante.

O Coliseu já foi lugar de muitas exibições, do cinema aos comícios políticos históricos, o que o leva revelar-se como objecto de pensamento em permanência. Fazer-se acontecimento quotidiano, popular e elitista ao mesmo tempo, sem evitar o paradoxo na sua heterodoxia, nem cair no elogio fácil do grande público. Sempre fiel à imensa diversidade desse mesmo público. Pertence ao núcleo de uma gramática essencial. “Cada cidade tem uma gramática” escreveu Vasco Graça Moura.

Esta casa de espectáculos que se desejava, e é magnífica, projectada por José Porto e Cassiano Branco, constituiu-se como elemento essencial da gramática portuense. Como décadas depois também vieram a ser o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, a Casa da Música, ou como numa outra época fora o Teatro S. João, hoje Teatro Nacional. A esta geometria dos palcos, da profundidade e do visível, juntam-se naturalmente outras casas e ressonâncias, como o Rivoli, Teatro Municipal. Mas o Coliseu é diferente: motivo e orgulho de uma grande catarse urbana, quando foi resgatado e restituído à sua integridade em 1995. Passou definitivamente para o património de todos. Ameaçado e ferido na sua dignidade, foi preservado na sua função, na sua identidade, e na sua materialidade, graças à acção cívica e espontânea da consciência portuense. “É nosso”. E esta relação de propriedade e posse afectiva e colectiva actualizou-se porque se a Câmara do Porto esteve sempre atenta ao Coliseu da Cidade, hoje adoptou-o e relegitimou-o. E também por isso foi possível trazer novos e essenciais parceiros ao projecto, como as Misericórdias de Lisboa e do Porto.

É uma evidência que a catarse urbana de 1995 é determinante no lastro cultural do Coliseu. Mas pertence ao passado. Se considerarmos o tempo, o modo e as circunstâncias em que ocorreu, arriscamo-nos a que seja um fenómeno irrepetível. E indesejável. Nenhuma instituição pode viver a admirar o seu próprio passado. Nenhuma miragem serve de garantia ao presente, nem é moeda de troca no mercado dos conteúdos. E durante demasiado tempo, na fase mais recente da sua história, o Coliseu não olhou para si próprio de forma criativa. Distraiu-se de si e do que acontecia à sua volta. Nenhuma instituição cultural e artística se reduz a uma equação valor de aluguer versus tabela de preços. Numa palavra, acabou por entrar em crise, em agonia. Cerca de dois anos volvidos e no dia em que comemora 75 de existência é agora indispensável ao elogio da alegria, conjuga agradecimento e celebração, comunica com uma voz própria que é o caleidoscópio dos ecos que se ouvem nas salas e lhe chegam da rua e dos jardins.

Há dias o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes afirmou que “o Estado não deixará cair o Coliseu”. A Cidade também não.

 

 

 

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