O regresso emocionado de Né Ladeiras

Na apresentação de Outras Vidas no CCB, na noite de 15 de Dezembro, Né Ladeiras emocionou e emocionou-se. Regresso feliz de uma grande cantora.

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Né Ladeiras ADOLFO USIER

Na verdade foi tudo muito repentino: o anúncio do regresso, o disco pronto (mas que só agora deve estar a chegar às lojas), o espectáculo de lançamento em Lisboa. Talvez por isso, e pela muita chuva que desabou até ao final da tarde, o Pequeno Auditório do CCB tenha ficado imerecidamente meio vazio na noite de 15 de Dezembro, quando Né Ladeiras ali apresentou Outras Vidas, disco que assinala o seu regresso à composição e aos palcos.

Apesar disso, quer da parte dela quer do público foi como se a lotação estivesse esgotada. Né Ladeiras mantém na voz o timbre que lhe é peculiar, e que lhe tem valido elogios sem conta ao longo da carreira, tal como as modulações e cambiantes que lhe dão identidade e uma expressão única. Do novo disco, ouviram-se todos os oito temas, aos quais ela foi acrescentando, como anunciara, outros que faziam sentido naquele contexto, fossem os resultantes de colaborações com Tiago Torres da Silva (autor de todas as letras do novo disco), fossem aqueles que por razões musicais ou emocionais melhor se lhes ligavam. Os músicos, Amadeu Magalhães, Ricardo Mingatos e Diogo Passos, fizeram (e bem) o resto.

O silêncio das inocentes, que abre o disco, abriu o espectáculo. E se às primeiras palavras a voz pareceu algo distante, depressa se recompôs, dando à canção a força necessária. La çarandilhera (do álbum Traz os Montes, de 1994) serviu de festiva introdução à Canção de Avita, de ares orientais, inspirada em figuras do século IV depois de Cristo. Né contou no CCB, como já fizera em entrevistas, que foi o facto de ter lido num mosaico romano, em Torres Novas, a frase “Cardilium e Avita vivem felizes na torre”, que a despertou para voltar a compor – acto para a qual Tiago Torres da Silva já a desafiara, até aí sem sucesso.

Feiticeira da saudade, do novo disco, ligou-se à memória de Greta Garbo e ao disco que Né fez com Luís Cília, em 1988, Corsária, inteiramente dedicado à actriz sueca. E foi em sueco que Né cantou Jag Vill Vara Ensam, para depois enfrentar a difícil e catártica (até porque autobiográfica) Cantiga de Assuão, onde ela cedeu por instantes à comoção. O mesmo haveria de suceder (depois de cantar Um amor feliz) em Benditos, de José Afonso, onde Né fez questão de corrigir a interpretação que fez à data, a pedido do cantor, que lhe dissera: “Tu vais cantar o meu testamento”. E ela, recordando os tempos duros dos ensaios em casa dele (por vê-lo assim, prostrado, Né disse que chegou a “zangar-se com Deus”), percebeu depois que tinha sido imatura na gravação. No CCB, a canção soou sublime.

Depois veio Todo este céu, de Fausto Bordalo Dias, título do disco que Né lhe dedicou, na íntegra, em 1997. E que fez uma ligação perfeita com as três canções do novo disco que se seguiram: Castelos no ar, À queima-roupa e Pano cru, esta de inspiração ranchera. O final fez-se com uma canção que Tiago Torres da Silva escreveu para o disco Da Minha Voz, de 2001, onde Né gravou com Chico César, Ney Matogrosso, Jorge Palma, Pedro Jóia e Tito Paris. Flecha, assim se chama a canção, nasceu da adaptação de uma música tradicional hebraica, aqui tematicamente apontada ao Brasil: “Flechas na garganta/ Iorubá/ No sangue de uma nação/ A pele negra de escrava/ esconde a lava/ que sai do meu coração.”

Depois vieram os encores, dois, exigidos pelo entusiasmo do público. No primeiro, Né cantou sozinha, com a sua Takamine de seis cordas, um tema ainda inédito, Syrius (era o nome de um pastor alemão de que ela cuidou e ao qual se afeiçoou, e que tragicamente veio a morrer atropelado meses depois; Tiago Torres da Silva escreveu, a pedido dela, a letra). A Syrius seguiram-se a emblemática Gracias a la vida, de Violeta Parra, e a dança transmontana de Cirigoça, segunda incursão no belo repertório do disco Traz os Montes.

No fim, porque os aplausos a obrigaram a voltar ao palco, repetiu-se a Canção de Avita, o que fez todo o sentido porque na verdade foi por ela que tudo começou. “Sou feliz quando canto, quando não canto sou mais ou menos”, comentou Né Ladeiras. “Mas hoje há um sol dentro desta sala. E esse sol são vocês”, disse ela dirigindo-se à audiência que a aplaudia. Um epílogo emocionado para uma noite feliz, que ela e o público dificilmente esquecerão.

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