Cinco anos que mudaram o mundo

O Victoria & Albert está feito um museu em versão estonteante, perguntando com a música e respondendo com a contracultura. You Say You Want a Revolution? Records and Rebels 1966-1970 são cinco anos que mudaram o mundo.

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Blow Up, de 1966 MGM THE KLOBAL COLLECTION
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Parte da exposição DR
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John Sebastian em Woodstock, 1969 Henry Diltz/Corbis
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Manifestantes contra a guerra do Vietname em 1967 no Pentágono Bernie Boston/Washington Post/Getty_Images
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1966 Wes Wilson/cortesia Steward Brand

Um agudo entra pelos auscultadores e distrai da prateleira de discos de vinil montada no meio do museu. Um poster questiona se passamos no teste dos ácidos e a antropóloga Margaret Mead avisa: “Nunca duvide que um pequeno grupo de cidadãos empenhados e pensantes pode mudar o mundo”. Este é um museu em versão estonteante. O agudo, esse, é uma sexagenária que cantarola God only knows na sua melhor versão de Brian Wilson distraído. Está de auscultadores, estamos todos, porque é 1966-1970 e os discos e os rebeldes estão no Victoria & Albert.

You Say You Want a Revolution?, pergunta o vetusto museu britânico, para logo responder que foi assim: Records and Rebels 1966-1970. A exposição temporária do Outono/Inverno do museu tem a mão dos autores do blockbuster, agora já em versão itinerante, que foi David Bowie Is, essa mostra tanto ambiciosa quanto vitoriosa sobre o músico e ícone que antecedeu por pouco a sua morte. Os curadores Victoria Broackes e Geoffrey Marsh atiraram-se agora a um período que é sobejamente conhecido e, diga-se, sobreanalisado, exposto e mitificado. “Nenhuma geração é tão deliberadamente auto-mitificadora quanto os baby boomers”, lembra o crítico cultural Alexis Petridis no Guardian. “Tinhas de ter lá estado”, em suma, frase para gerar invejas  ou impossibilidades de perceber mesmo, mesmo, o que foram os sixties.

A visitante dos agudos à Beach Boys esteve lá. Outra senhora de cabelos cor da neve anuncia com um “Oh my god” que vai “chorar” frente à vitrine que emula uma das várias boutiques de Carnaby Street e da King’s Road londrinas, a mítica Biba – “Comprei lá roupas, o chão andava à roda!”. É uma das vantagens de se ter, de facto, lá estado, mas também de ter vivido em Londres, um dos epicentros do youthquake, da rebelião alimentada pela música e de tudo o que aconteceu naqueles cinco anos e que o V&A tenta condensar em várias salas cheias, muito cheias, tanto de gente quanto de materiais. Há vídeos, espelhos escritos, cores, um falso espaço festivaleiro, um simulacro de cinco anos que mudaram o mundo. Há um lado ligeiramente robótico na experiência You Say You Want a Revolution?, servido pelos auscultadores (imersivos e ao mesmo tempo permissivos em relação ao som exterior) que todos os visitantes podem usar gratuitamente e que são accionados pelo local onde se está na exposição. “Queríamos ilustrar a música e o que se passava em torno dela, como os músicos tinham papéis verdadeiramente importantes como líderes sociais - a uma escala que é muito, muito difícil imaginar hoje”, explica Victoria Broackes ao Ípsilon.

Como responsável pelo departamento de Teatro e Performance do V&A e parte da dupla de Bowie Is, tinha a responsabilidade de suceder a uma exposição retumbante e de voltar à música num museu que não tem um departamento dedicado… à música. E, talvez acima de tudo, para o visitante alheio aos pergaminhos curriculares da exposição, tinha a obrigação de fazer algo mais rico do que uma simples nostalgia trip. Que é em parte inevitável. Entre os cerca de 250 álbuns emprestados por John Peel e postulados irredutíveis - Blow up é “o filme que encapsula a contracultura”; Michael Caine é a “epítome da nova sociedade meritocrática dos 60s”; “The single greatest moment in the sixties” é Jimi Hendrix a tocar Star Spangled Banner –os comissários quiseram sim perguntar-nos se perdemos a capacidade de imaginar um mundo melhor.

Entre a visita do Ípsilon à exposição e a conversa telefónica com Broackes, Donald Trump foi eleito Presidente dos EUA e poucos meses tinham passado desde o referendo que confirmou o “Brexit”. Broackes não consegue não olhar para esses dois factos políticos para falar sobre aquele momento no século XX em que “havia uma crença real no progresso” de pessoas que “viviam na sombra do apocalipse” e mesmo assim iam “à Lua com ambição e esperança no acto de imaginar o impossível”.

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Os comissários fazem uma declaração de intenções. “Queríamos explorar uma mudança significativa nas atitudes das pessoas” naquele período da década de 1960 em que se ganhou autonomia em relação aos valores e ditames dos “mais velhos”, os “elders and betters”, reflecte Victoria Broackes. “Os resultados [das eleições] nos EUA e o nosso voto ‘Brexit’ são, num certo sentido e em parte, as pessoas a dizer que não aceitam que lhes digam o que é bom para elas e que vão fazer as coisas à sua maneira. Embora os hippies e a maior parte da contracultura ficassem horrorizados” com o que está a acontecer, sorri, há um estranho paralelo entre aqueles cinco anos que a exposição analisa e estes cinco meses em que parte do mundo enquanto o conhecíamos mudou. No fundo, “há ligações ideológicas que remontam a este período dos anos 1960, com este sentimento arquilibertário, anti-autoridade e anti-governo” que agora permeia a cultura, e a exposição tenta de facto equilibrar os fatos de palco de Mick Jagger com o motim dos presos em Attica em 1971.

No V&A, vive-se a exposição com a habitual azáfama das suas mostras bem sucedidas. Há muita gente, alguma a contrariar com a sua experiência e comportamento a ideia de que esta não é só uma viagem pela rua da memória, e há muitos, mesmo muitos estímulos. Yoko e John lembram que War is Over! If you want it!, botas cardadas espezinham-nos as ideias, as manifestações endurecem, a contracultura é também a luta dos direitos civis nos EUA, a revista Gandalf’s Garden escreve sobre como a trilogia de O Senhor dos Anéis permite uma analogia com a guerra do Vietname.

A geografia da exposição tem sempre a música como guia e veículo de mudança e está focada em seis locais e momentos – entre eles “Londres em 1966, porque a Time lhe chamou swinging London e todos estavam a olhar para ela” e porque tanta da colecção do V&A se alimenta dessa Londres; Montréal para mostrar o advento do consumismo; ou Woodstock em 1969 porque é incontornável. “Somos do departamento de performance e teatro do V&A e também vemos uma exposição como uma performance ambulante, um espectáculo”, postula Broackes, assumindo que os cinco anos que enquadram a mostra foram escolhidos por motivos também eles performativos, mas legais.

A exposição “é sobre ideias”, porque naqueles cinco anos algumas mudanças na letra da lei tornavam tudo evidente. “Em 1965 ainda se podia ser enforcado por homicídio, o divórcio era muito difícil, o aborto era ilegal, a pílula só estava disponível para mulheres casadas, havia censura, ser homossexual ainda era ilegal. No final do nosso período, tudo isso tinha mudado”, enumera a comissária ao telefone com o Ípsilon.

Um dos aspectos mais evidentes, porque permeia todo o boom dos sixties, e ao mesmo tempo só evidenciado numa secção, é o lado comercial da década. Em 1947 nascia mais de um milhão de bebés no Ocidente e, em 1960, eram todos adolescentes. Novos consumidores, cultura juvenil a afirmar-se pela força dos números e pelos números da ideologia.“A contracultura produziu um centro comercial cheio de ideias e filosofias, desafios e perspectivas”, escreve Barry Miles, biógrafo da geração Beat e de Frank Zappa, autor de London Calling: A Countercultural History of London e fundador do primeiro jornal underground da Europa The International Times. “O seu maior legado”, diz sobre o movimento que viveu e protagonizou, “foi uma década de experimentação musical excepcional, mas também mudou a sociedade para melhor”, dos movimentos gay à ecologia, passando pelos festivais de rock à afirmação sexual feminina - “mas mais importante que tudo, a contracultura trouxe uma saudável desconfiança quanto ao establishment que permanece até hoje”.

Quando nos aproximamos do fim, somos bombardeados com mais imagens. Hillary Clinton, a prática do ioga, a personagem de Don Draper em Mad Men, George W. Bush e a eterna Imagine de Lennon a flashar. A exposição, e o caminho, terminam em 1970. “Quando os Beatles acabaram em 1970, o seu fim teve paralelo no de muitos movimentos revolucionários da época”, escreve Victoria Broackes no catálogo da exposição sobre aquele que é talvez o grupo musical mais importante do seu tempo. “A combinação de forças que parecia levar as coisas a uma paragem brusca – o consumismo, o materialismo individualista e a ingenuidade – também fez parte da história deles. A ‘revolução’ da utopia e dos hippies entrou em declínio; os grupos anti-guerra e anti-establishment radicalizaram-se, afastando-se dos peaceniks e rumando a organizações como os Baader Meinhof e as Brigadas Vermelhas.”

Os visitantes continuam de auscultadores na cabeça, alguns sentam-se no Woodstock de relva artificial e almofadas no chão, outros examinam cada manuscrito ou letra original com afinco. Ainda “é muito cedo para dizer quem ganhou as revoluções dos anos 1960”, diz, também no catálogo homónimo da exposição Sean Wilentz, professor de História Americana em Princeton, porque “de muitas formas, essas revoluções continuam”.

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