O beijo que vós me nordestes

Regressou à Paraíba para ser secretário da Cultura e a volta às origens valeu-lhe um novo amor e um disco que reflecte esse espírito: Estado de Poesia. Chico César lembra como foi crescer no sertão.

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O concerto era de beneficência, para apoiar o violoncelista chileno do Quinteto da Paraíba, Nelson Campos Videla, que desde 1979 reside na Paraíba e precisa de ajuda financeira para o tratamento de um cancro que lhe foi diagnosticado em Setembro. Chico César tocava com o quinteto e não com a sua banda no anfiteatro do Espaço Cultural José Lins do Rego, cheio com umas quatro centenas de pessoas. Se o seu mandato como secretário da Cultura da Paraíba (2010-2014) tem sido alvo de críticas, essas não se fizeram sentir na forma calorosa com que foi recebido no regresso a casa. O músico prefere evitar o tema da sua passagem pela gestão política e a entrevista quase não se concretizou exactamente por isso.

Para avaliar a relação estreita entre Chico César e o público nem era preciso chegar a esse Bêradero, cantado a capella em coro num casamento prefeito de poesia e emoção. “Uma moça cosendo roupa/com a linha do Equador”; “a tinta pinta o asfalto/ enfeita a alma motorista”; “e o beijo que vós me nordestes”; com versos que nos fazem sentir bem ao cantá-los.

Já antes, A Prosa Impúrpura do Caicó (“Ah! Caicó arcaico/em meu peito catolaico/ tudo é descrenças e fé”) merecera igual entusiasmo, assim como Deus me Proteja de mim e o Estado de Poesia que dá nome ao seu último álbum e onde Chico César a certa altura canta: “Para viver em estado de poesia/ me entranharia nesses sertões de você”.

O músico, nascido em Catolé do Rocha, no sertão da Paraíba, não lançava um disco de originais desde 2008 até o ano passado ter editado Estado de Poesia, um disco inspirado, pelo regresso às origens e pela descoberta de um novo amor.

“Eu estava vivendo mais uma vez perto de meus pais e dos lugares onde fui criança, adolescente e jovem. Ou seja, do lugar onde a minha própria subjectividade foi gerada”, começa por explicar. “Estavam aí se encontrando o estado geopolítico e o meu próprio estado de espírito. Isso foi muito inspirador, somando-se ao facto de que, pelo meio do caminho, me apaixonei por Bárbara Santos, o que canalizou a criação para um ambiente de canções de amor e poesia bastante livres”.

“Tudo mudou, eu mudei. E isso foi muito bom”, acrescenta o músico, que se diz “muito influenciado pela cultura do sertão”, nomeadamente o aboio, os reisados e o pastoril. Só “depois é que vem a cultura mais litorânea: os cocos, cirandas, a nau catarineta” - assim com esse “a” depois do “t”, como se diz no Brasil. Principalmente, sente-se atraído pelo “seu carácter vivo, de algo que não se engessou e sempre busca em si mesmo e no quotidiano a própria renovação”.

O trabalho no Governo da Paraíba permitiu-lhe conhecer um pouco mais das expressões culturais do estado. “Conhecia pouco da região do Cariri, que me pareceu um sertão ainda mais seco, e do Brejo, com temperaturas mais amenas. A região do Cariri é uma região com muitos poetas e a região do Brejo tem muitas festas em torno da cultura dos engenhos, da produção de cachaça e outros derivados da cana-de-açúcar.”

Aquilo que conheceu gostava que outros conhecessem também. Mais do que desejar que a cultura da Paraíba seja conhecida no resto do Brasil, “gostaria que a cultura paraibana fosse mais conhecida na própria Paraíba. Que a música paraibana tocasse regularmente nas rádios paraibanas, que seus artistas fossem conhecidos e valorizados antes de serem enxergados pela mídia nacional.”

Porque, apesar de ter saído da Paraíba e feito carreira no Sul, Chico César acredita que não existe necessidade imperiosa de deixar o estado para fazer carreira. Apesar do seu exemplo não ser único – tal como ele, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Sivuca (que morreu há dez anos, a 14 de Dezembro de 2006) saíram da Paraíba.

“Flávio José é um nome nacional e continua residindo na cidade de Monteiro, no Cariri paraibano. Muitos artistas plásticos de nome nacional e mesmo internacional, como Flávio Tavares, vivem na Paraíba e aí têm as bases de seus trabalhos.”

Mesmo actores como Zezita Matos, Fernando Teixeira, Nanengo Lira, Buda Lira conseguem manter-se no estado e ir “fazendo filmes que correm o mundo”.

Crescer numa loja de discos

Começou cedo a sua relação com a música, mesmo que, por exemplo, o primeiro grupo de que fez parte, Super Som Mirim, não tenha sido mais do que brincadeira de criança. O que não é de admirar tendo em conta os dez anos na altura da experiência.

Essa “coisa de garotos que se encontram para brincar de música” evoluiu para algo “mais sério” no Grupo Ferradura, “quando já fazíamos nossas próprias composições e eu tinha 14 anos”.

“Havia festivais de música, festivais de teatro dentro das programações das festas universitárias de todo o sertão, quando os jovens que estudavam nas universidades de João Pessoa e Campina Grande regressavam em férias para suas cidades interioranas. E isso era estimulante”, conta.

Também o ajudou o trabalho numa loja de discos e livros dos oito aos 15 anos. A Lunik deu-lhe o acesso “a muita informação paralela à formação escolar”. E como a cidade era pequena havia “sempre muito tempo para reflectir sobre o que lia e ouvia”, algo que “falta muitas vezes para quem vive numa cidade grande em meio a uma enxurrada de informação”.

A sua educação, diz, teve “peculiaridades”, não só por ter crescido no sertão, “que é já um lugar especial”, também por ser uma cidade pequena “com um colégio de freiras franciscanas alemãs fugidas da Segunda Guerra, um colégio dirigido por frades capuchinhos que faziam crítica ao governo militar e ainda outro colégio agrícola de orientação esquerdista que acabou fechado pela ditadura militar”.

Já para não mencionar o “treinamento de guerrilha em 1969, que culminou com a prisão de vários jovens da cidade”, incluindo o seu irmão, quando Chico César tinha apenas cinco anos.

Deixado o sertão nos anos 1980 para prosseguir os estudos na universidade (formou-se em Jornalismo), ganhou um lado “mais anarquista” e andava pelas ruas a recitar poesia, em relação com “os movimentos das vanguardas literárias”, de “carácter mais dionisíaco e, ao mesmo tempo, panfletário”.

O seu percurso acabaria por o levar mais para os lados do “vanguardismo popular” dos Jaguaribe Carne (ver texto principal), um grupo que “pensava a tradição” mas sempre de maneira a colocar “elementos de contradição” que lhe davam um carácter modernista.

E seria depois dessa experiência que rumaria a São Paulo, tinha apenas 21 anos. Custou-lhe dez anos até gravar o primeiro disco e muitos anos para regressar à Paraíba, onde se voltou a apaixonar pela vida e a ficar curioso por algo que sempre fez parte de si. “Estado de Poesia” é um disco, como ele próprio afirma, de “liberdade” que termina com um manifesto de 11 minutos contra o agronegócio no Brasil.

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