Missão impossível: Alepo não pode esperar nem mais um dia

Guterres prometeu que a sua prioridade será a prevenção dos conflitos. Terá que encontrar maneira de diminuir o sofrimento humano nos que já estão a acontecer.

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1. Por que razão o Conselho de Segurança da ONU escolheu alguém com um forte perfil político para liderar as Nações Unidas, precisamente quando a crescente desordem internacional não augura nada de bom para o seu futuro? A pergunta foi feita em diversos idiomas por quem costuma observar aquilo que se passa na sede da ONU, em Nova Iorque. Registou um coro de louvores, conseguindo quebrar o muro de cinismo que normalmente se manifesta nestas ocasiões. António Guterres tinha tudo para que as coisas lhe corressem mal. A ideia “politicamente correcta” de escolher uma mulher predominou até bastante tarde. Depois, veio o obstáculo da rotação das regiões do globo, beneficiando a Europa de Leste e ignorando o facto de ela fazer parte da União Europeia. A mudança que permitiu a vitória de Guterres contra todos os outros candidatos deve-se apenas às novas regras do jogo que abriram as portas ao mérito individual de cada um e à visão que apresenta do exercício do cargo. Antes, o processo cingia-se ao Conselho de Segurança, muitas vezes sem candidatos apresentados publicamente, e o resultado dependia dos cinco países com direito a veto que punham e dispunham. Com o fim da Guerra Fria, ainda foi possível pensar que a ONU poderia reassumir um papel importante como garante da paz e na segurança mundial. Chegou a aprovar um novo princípio fundamental que legitimava as intervenções humanitárias: a responsabilidade de proteger. Progressivamente, as mudanças que se seguiram ao 11 de Setembro e ao regresso de Putin voltaram a fazer do multilateralismo assente nas instituições internacionais um sonho aparentemente impossível. É aí que estamos hoje. A única novidade é a escolha de um líder político, capaz de dizer algumas coisas desagradáveis às grandes potências, incluindo as democracias europeias e norte-americanas. Que consolidou a sua visão do mundo durante os dez anos que esteve à frente do ACNUR, precisamente numa altura em que o drama dos conflitos e das guerras prolongadas empurrou milhões de pessoas para a situação de refugiados, numa dimensão que nunca se vira depois da II Guerra. Que foi capaz de reformar a estrutura da organização, reduzindo o peso humano e financeiro da burocracia. Que não teve medo de dizer aos ricos que, se tivessem dado a mesma atenção aos refugidos que deram à crise financeira, o mundo estaria certamente muito melhor. A sua candidatura não podia pura e simplesmente ser ignorada.

Mas não foi esse o único efeito do novo modelo de escolha do sucessor de Ban Ki-moon. Os grandes meios de comunicação social, normalmente indiferentes a quem vai chefiar a ONU, desta vez foram, também eles, os espectadores de um processo público. Deixaram de o resumir em meia dúzia de linhas, tentando decifrar os segredos de bastidores. “A sua eleição foi bem recebida a nível global” diz a Economist. Prossegue a revista: “Houve candidatos patrocinados por uma das superpotências, mas nenhum conseguiu igualar as qualidades de Guterres.” Há o reverso da medalha. O novo secretário-geral “toma conta de uma organização perto da bancarrota política”, diz Richard Gowan, académico da Universidade de Columbia.

2. Hoje, quando António Guterres tomar posse em Nova Iorque, o risco de caos internacional consegue ser ainda maior do que o do dia em que foi escolhido, mesmo que tenha passado apenas um mês. A eleição do sucessor de Obama representa um sério revés para uma ordem internacional ainda assente nas instituições multilaterais, que depende ainda muito dos EUA, em matéria política e financeira. Há coisas que já sabemos. Que Donald Trump não gosta de instituições multilaterais, da NATO à ONU, passando pela OMC. Que defende uma política que dispensa a América dos seus compromissos internacionais, um “nacionalismo sem horizontes”, como escreve Adam Quinn, da Chatham House de Londres, interessado em afastar-se dessas instituições. É o que significa “America First”. Que tem uma visão do mundo (se é que tem uma visão do mundo) que se resume a tratar amigos e inimigos como incómodos desnecessários que terão direito ao que pagarem. Os americanos que o elegeram não têm a menor simpatia pela ONU.

Obama foi um defensor empenhado do multilateralismo. Clinton também o seria. Quando o Presidente entrou na Casa Branca, em Janeiro de 2009, com todo o manancial de esperança que trazia consigo, Guterres disse ao PÚBLICO que “ele era a condição necessária mas não suficiente”. O mínimo que se pode dizer é que a eleição de Trump não lhe vai facilitar a vida, quando mais precisava da América para enfrentar um cenário internacional incapaz de travar o morticínio em Alepo ou o combate ao flagelo do Estado Islâmico ou às guerras esquecidas de África e às consequências da viragem de Putin, que acontece perante o olhar indiferente ou impotente da maioria das democracias ocidentais. “Perdemos mais tempo e mais dinheiro a gerir as crises do que a preveni-las”, disse à Time o novo secretário-geral. “Mas as câmaras de televisão não costumam estar nos locais onde um conflito foi evitado.” Na passagem do ano de 2013 para 2014, disse ao PÚBLICO: “Antes, as guerras costumavam ter vencedores e vencidos. Agora, nas guerras, ninguém ganha, todos perdem.” 

3. “Quantas divisões tem o Papa?”, perguntou Estaline ao chefe a diplomacia francesa Pierre Laval, em 1935. Morreu sem saber que o Papa não precisou de divisões para começar a derrubar a Cortina de Ferro. Guterres, que recebe uma força de quase 100 mil Capacetes Azuis espalhados pelo mundo, só os pode utilizar com o consentimento do Conselho de Segurança, ou seja, as suas divisões não são suas. Só pode pôr termo à insuportável tragédia humana da Síria caso consiga um entendimento entre Washington e Moscovo. Com um enorme risco. Se Trump preferir entender-se com Putin e Assad para centrar o combate contra o Daesh, dará a ambos carta-branca para matar. Com a França paralisada, o Reino Unido à deriva, a Itália sem governo e a chanceler alemã já a olhar para as eleições do próximo ano, não poderá contar com grande coisa da Europa. Vai enfrentar uma organização em mudança, em que as grandes potências emergentes pesam cada vez mais, nem sempre no melhor sentido. A China já manifestou a sua crescente ambição, ao dizer que, um dia destes, quer para si o comando dos Capacetes Azuis, para os quais já contribui com tropas e dinheiro. A Rússia sonha com um cenário de divisão europeia e transatlântica para aumentar a sua zona de influência na Europa. As duas potências não democráticas com direito a veto no Conselho de Segurança estão na ofensiva. As democracias ocidentais na defensiva.

4. Guterres acumulou a simpatia de muitos países das várias regiões do globo, que hoje lhe permite não ser visto como uma simples escolha dos poderosos. Afastou-se de uma perspectiva meramente ocidental, muitas vezes arrogante, e tentou fazer a ponte com outras culturas e religiões, para encontrar nelas o mesmo dever de proteger que é comum às democracias. Isso gerou alguma boa vontade a seu favor. Tem uma capacidade de comunicação que lhe poderá servir de muito a partir do seu posto, para que a ONU, na sua missão de preservar a paz, não desapareça perante a vontade das grandes potências. Chega à ONU com uma visão global da desordem que impera no mundo e das suas consequências humanas. E isso é um bom ponto de partida. “Hoje, não vivemos num mundo bipolar, não vivemos num mundo unipolar, mas também não vivemos num mundo multipolar”, disse ao PÚBLICO na mesma entrevista. “Vivemos num mundo relativamente caótico em que as relações de poder deixaram de ser claras”, criando uma situação de imprevisibilidade. A sua missão parece ser “impossível”. A catástrofe síria, citando um diplomata da ONU, “é a pior crise institucional do Conselho de Segurança desde a guerra no Iraque”. Outras missões serão igualmente “impossíveis”, se bem que menos urgentes, como a eternamente adiada reforma do Conselho de Segurança para traduzir a nova realidade internacional. Prometeu que a sua prioridade será a prevenção dos conflitos. Terá que encontrar maneira de diminuir o sofrimento humano nos que já estão a acontecer. Alepo não pode esperar.

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