Cientistas portugueses unem-se contra exportação de esqueletos humanos

Contestação surgiu após um investigador no Canadá ter pedido à Câmara de Lisboa 100 a 200 ossadas não reclamadas nos seus cemitérios – e de a solicitação ter sido aceite. Em causa não está a investigação em esqueletos humanos, mas sim a sua exportação.

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Uma das colecções de material osteológico cuja identidade das pessoas é conhecida e que está na Universidade de Coimbra Sérgio Azenha
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Uma das colecções de material osteológico cuja identidade das pessoas é conhecida e que está na Universidade de Coimbra Sérgio Azenha

O antropólogo Hugo Cardoso, da Universidade de Simon Fraser, no Canadá, pediu à Câmara Municipal de Lisboa (CML) a doação de esqueletos humanos recentes, do final do século XIX e início do século XX, para investigação científica e ensino. O pedido foi aprovado por unanimidade, em reunião de câmara em Junho. Mas desencadeou a oposição de um grupo de 24 antropólogos portugueses, que querem travar essa ideia: consideram que se trata de “exportação” de esqueletos humanos, que isso daria uma má imagem do país, que existe um vazio legal e que é necessário um debate profundo sobre tudo isto.

Por isso, os 24 investigadores e profissionais da antropologia biológica alertam para as consequências da saída das ossadas humanas, numa carta que enviaram a 18 de Outubro a vários ministros – nomeadamente, ao ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, ao da Ciência, Manuel Heitor, e ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.

“Não podíamos ficar de braços cruzados perante uma situação inédita. Não queremos ser o primeiro país do mundo [nos tempos actuais] a fazer exportação de esqueletos humanos, ainda para mais identificados”, diz Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra, e a primeira signatária da carta. “Os esqueletos humanos são restos de pessoas. Já não lhes basta terem sido abandonados pela família?”, nota a antropóloga, referindo-se às ossadas exumadas dos cemitérios ao fim do prazo legal numa sepultura temporária (pelo menos três anos) e que ninguém reclama.

Exportações de ossadas humanas já aconteceram, mas no passado: “No século XIX! Na altura do colonialismo. Temos restos humanos que vieram de Timor, de Angola. Cada investigação tem a sua altura. Não vamos voltar ao passado. Hoje as coisas são diferentes”, continua Eugénia Cunha. “O Canadá não permite que os esqueletos dos canadianos sejam analisados – não permite fazer colecções de esqueletos [recentes] identificados –, mas vai permitir que os portugueses sejam lá analisados? Nada disto faz grande sentido.”

A mesma opinião tem outra signatária da carta, Susana Garcia, curadora convidada das colecções de antropologia do Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa. “Se no Canadá acham que não é ético ter esqueletos humanos [recentes] deles, qual é o argumento para os virem buscar a outro país? Parece que os canadianos têm um valor superior a nós, portugueses. Parece que há dois pesos e duas medidas”, assinala.

“Exportar não. A ciência já não é considerada um valor absoluto. No século XIX, era um valor absoluto, em nome da ciência tudo se justificava. Os museus têm de saber interpretar o sentimento das pessoas e, neste momento, não é o da exportação. Pelo contrário, é o da repatriação, é devolver às comunidades os esqueletos”, nota ainda Susana Garcia.

Para quê tantas ossadas?

Hugo Cardoso solicitou ossadas à CML em Dezembro de 2014. A título gratuito, o que pediu foi “a doação de ossadas abandonadas dos cemitérios de Lisboa”, lê-se na sinopse do pedido formal, que disponibilizou ao PÚBLICO. “Pretende-se transportar para a Universidade de Simon Fraser um número aproximado de 100-200 ossadas humanas abandonadas nos cemitérios da cidade de Lisboa, número que poderá ser considerado um máximo”, dizia ainda o investigador no pedido.

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O antropólogo Hugo Cardoso

Para que quer o investigador as ossadas? Para criar o que se designa por uma “colecção de referência” de esqueletos humanos recentes. Nestas colecções, as pessoas estão identificadas: os cientistas conhecem-lhes o nome (em Portugal o anonimato é mantido), o sexo, a idade, quem eram os pais, as causas da morte, as doenças que tinham e, nalguns casos, até a profissão ou se tinham filhos (porque, por exemplo, há acesso a certidões de óbito, relatórios de autópsia ou fichas clínicas).

Estas colecções têm assim um valor dito “de referência”, porque permitem que exista informação osteológica sobre as populações actuais que pode servir de comparação para uma série de estudos, desde arqueológicos até forenses. Podem, por exemplo, fazer-se comparações com colecções de ossadas humanas paleontológicas e arqueológicas existentes em museus, cuja identidade se desconhece. Ou desenvolverem-se metodologias úteis em situações de catástrofes naturais. Portanto, têm grande valor científico.

Como os humanos se vão adaptando ao ambiente, ocorrem alterações anatómicas, mudanças nos padrões de crescimento e de maturação biológica, variações na dieta ou prevalência de doenças, fundamentava Hugo Cardoso no seu pedido à CML. “Crucial para o estudo das populações do passado são os esqueletos modernos que se constituem como modelos ou referências singulares, apenas a partir das quais é possível, por via comparativa, conhecer a história evolutiva humana, a vida dos povos pré-históricos e históricos”, dizia o antropólogo. Frisava que este material tem ainda “um papel fundamental no desenvolvimento e teste de técnicas de identificação médico-legal de ossadas não identificadas, pois as amostras paleontológicas e arqueológicas não são representativas da população forense”. Por fim, falava da importância das colecções de referência no ensino, uma vez que “documentam a variabilidade anatómica actual”.

Em resposta ao PÚBLICO Hugo Cardoso explica também o porquê de tantas ossadas pedidas para criar uma colecção de referência. “É muito importante que uma grande variabilidade morfológica e anatómica, incluindo, por exemplo, indivíduos do sexo masculino e feminino, mas também de várias idades. Essa variabilidade é crucial para a formação em anatomia óssea, que permite aos alunos reconhecer todos os ossos do esqueleto humano a partir de fragmentos, apesar das inúmeras diferenças individuais que possam existir”, começa por dizer. “No caso de projectos de investigação, um número significativo de indivíduos é essencial para que as interpretações tenham validade estatística e implicações práticas, por exemplo na criação de métodos forenses para a identificação de vítimas não identificadas”, acrescenta. “Tanto em termos de ensino como de investigação, a colecção pretende dotar os futuros especialistas de conhecimentos que lhes permitam identificar ossos humanos em caso de catástrofes naturais, desastres em massa ou atentados, investigações sobre eventual violação de direitos humanos e outras mortes violentas em que o cadáver da vítima se encontra desfigurado, destruído, putrefacto ou esqueletizado. Desempenhará um papel importante na identificação destas vítimas e, potencialmente, na determinação da sua causa de morte.”

As restrições no Canadá

Acontece que no Canadá, actualmente, a criação de novas colecções de referência com esqueletos de canadianos não é permitida. Ou a investigação médica, anatómica e forense se faz hoje com cadáveres de canadianos que decidiram doar o corpo em vida à ciência, ou o material cadavérico existente de canadianos identificados foi obtido antes da legislação actual. “O Canadá tem uma colecção de esqueletos canadianos identificados, em tudo semelhante a colecções que têm como base ossadas de cemitérios (e que existem em várias partes do mundo), mas que tem [teve] origem em cadáveres não reclamados e que foram utilizados no ensino da anatomia. A colecção está conservada na Universidade de Toronto”, diz-nos Hugo Cardoso, ao fim de alguma insistência. E consiste em esqueletos de 202 indivíduos adultos recebidos pela universidade entre 1928 e o início dos anos 50, a maioria de hospitais locais e instituições de assistência social.

“Também existem várias colecções de ossos de não canadianos, conservadas em museus e universidades do Canadá, incluindo na Universidade de Simon Fraser. Esse material foi obtido com base nas respectivas autorizações e tem sido utilizado para ensino e investigação”, especifica o investigador.

“Contudo, os esqueletos não se podem ir buscar aos cemitérios no Canadá, tal como não se podem ir buscar aos cemitérios noutros países cuja tradição de inumação, como no Canadá, é protestante (América e Europa do Norte). A prática protestante prevê apenas a inumação definitiva e perpétua, na maior parte das vezes, e por isso a exumação de ossadas não é usual”, explica. “Por comparação, nos países de tradição católica a exumação das ossadas é uma prática corrente, e daí encontrar colecções de referência de esqueletos humanos obtidos de cemitérios em Portugal, Espanha, Itália ou França ou Grécia e Roménia (a tradição ortodoxa é similar à católica) e países da América do Sul, como o México, a Colômbia, a Argentina e o Chile, entre outros.”

Por tudo isto Hugo Cardoso (que antes de ir para o Canadá trabalhou nas colecções de referência de Lisboa e do Porto) quis vir buscar esqueletos aos cemitérios municipais lisboetas. “Caso consiga angariar os apoios financeiros necessários, certamente que eu e a Universidade de Simon Fraser avançaremos com este objectivo”, mantém o antropólogo, já depois de saber da polémica. E, após vários emails com o PÚBLICO, diz: “Nunca foi intenção do projecto manter as ossadas no Canadá de forma definitiva e o plano foi sempre definir uma forma de devolvê-las a Portugal.” Mas essa devolução não consta nem da sinopse do seu pedido formal, nem da deliberação da CML sobre a doação à universidade canadiana (que fala em cedência a “título definitivo”), nem foi estabelecido qualquer acordo com instituições portuguesas que têm colecções para receberem os esqueletos de volta.

Na deliberação da CML (publicada no Boletim Municipal a 23 de Junho) lembra-se que “nos cemitérios municipais existem inúmeras ossadas abandonadas, cujo destino comum é a cremação” e que o regulamento dos cemitérios municipais “prevê que às ossadas abandonadas possa ser dado ‘o destino mais adequado’”.

O ensino e a investigação científica seriam assim um desses destinos, até porque, recorda a deliberação camarária, está em vigor legislação que permite a dissecação de cadáveres e extracção de peças, tecidos e órgãos para fins de ensino e investigação. Para a decisão, a CML pediu pareceres ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), bem como ao Conselho Médico-Legal do Instituto de Medicina Legal e de Ciências Forenses. O CNECV foi da opinião que “se afigura legítimo a cedência de ossadas (tecidos ósseos) consideradas abandonadas”. Daí que, segundo a deliberação da CML, os pareceres pedidos “perfilham o entendimento de que as ossadas abandonadas podem ser cedidas a título definitivo (doadas) à Universidade de Simon Fraser”.

Se mantém a doação ou vai suspender o processo, a CML diz agora ao PÚBLICO que vai ter uma reunião ainda este mês com os promotores da carta contra a exportação dos esqueletos.

Sem legislação específica

A doação das ossadas a uma instituição estrangeira chegou às páginas do Diário de Notícias, em Setembro, e o caso tornou-se então público. A partir daí, Eugénia Cunha iniciou uma discussão com colegas antropólogos que desembocou na carta, assinada ainda, entre outros, por Catarina Casanova (do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política da Universidade de Lisboa), Cidália Duarte (da Direcção Regional de Cultura do Norte), Cláudia Umbelino ou Maria Teresa Ferreira (ambas da Universidade de Coimbra). “A CML pode dispor dos restos humanos esqueletizados classificados como ‘não reclamados’ como achar mais adequado, inclusivamente cedendo este espólio para investigação”, ressalvam os investigadores na carta.

Dizem que não é isso que está em causa – porque, aliás, essa cedência existe em vários pontos do país: entre os cemitérios da capital e o Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa; entre os cemitérios de Évora e a Universidade de Évora; o cemitério de Santarém e a Universidade de Coimbra; e os cemitérios do Porto e a Universidade do Porto. E no passado já existiu entre os cemitérios de Coimbra e a universidade coimbrã. “Não nos opomos à análise científica de tecidos humanos de forma eticamente controlada, que é, aliás, nossa prática. Salientamos que ‘ceder’ não tem o mesmo significado que ‘doar’”, escrevem os 25 antropólogos.

Eugénia Cunha, por exemplo, concorda com a investigação científica em esqueletos humanos, desde que “devidamente acautelada” e os esqueletos “dignificados”. “Não somos contra o estudo e análise de restos humanos. Achamos importante e queremos que continue a acontecer”, defende. “O que está em causa é a exportação de restos humanos para o estrangeiro. Esta questão tem de ser discutida. A cedência, em situações particulares e bem acauteladas e reguladas, sim. Mas o envio de 200 indivíduos, não. Isso não mesmo!”

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A antropóloga Eugénia Cunha junto a um dos esqueletos das colecções da Universidade de Coimbra Sérgio Azenha

Mas então por que é que os cientistas em Portugal não vão buscar mais desses esqueletos? “Não é ir buscar esqueletos por ir buscar, para ficarem dentro de um saco. Temos de garantir que são tratados com dignidade e temos condições para o fazer”, responde Susana Garcia.

Na carta aos ministros, os investigadores consideram que a doação dos esqueletos de um município a uma entidade estrangeira “não é legítima” e que configura “a exportação de bens que são pela sua natureza património nacional”: “É surpreendente que esta decisão tenha sido tomada unilateralmente por um município, sobretudo quando está em causa a exportação destes tecidos humanos para outro país.”

Para Eugénia Cunha – e não só –, toda esta questão só surgiu porque há um vazio legal sobre a exportação deste tipo de tecidos humanos. “A lei não previu que alguém se pudesse lembrar de levar restos mortais para o estrangeiro. Existe um vazio legal, sobretudo que acautele a questão de os esqueletos serem exportados.”

Por isso, os 24 investigadores também pedem a criação de legislação específica que regule a cedência para investigação de cadáveres humanos esqueletizados recentes (vulgo, esqueletos) com carácter de património biológico nacional, nomeadamente a entidades estrangeiras. É que não são considerados nem cadáveres nem amostras biológicas. Ainda que fossem considerados cadáveres, também não há legislação sobre a sua exportação para fins científicos. Os investigadores lembram, aliás, que o parecer do CNECV “não emite opinião sobre a exportação [das ossadas], nem poderia fazê-lo” – o que diz, consideram, é que não vê problemas éticos em fazer investigação científica em esqueletos humanos.

Até que sejam criadas essas condições legais, defendem que se impeça a saída dos esqueletos do país. Receiam que, a ir para a frente, se abra um precedente “à doação directa de cadáveres humanos não reclamados, onde quer que se encontrem nas instituições do serviço nacional de saúde, podendo preencher facilmente os teatros anatómicos de países que têm dificuldade na sua obtenção”.

“Se os esqueletos forem, já não voltam. Esta é uma situação apressada”, realça outra signatária da carta, Teresa Matos Fernandes, curadora da colecção de esqueletos identificados da Universidade de Évora. “Estas situações têm de ser pensadas com muito cuidado, para não se abrirem precedentes. Em Portugal podemos continuar a fazer colecções osteológicas humanas identificadas. Têm sido estudadas por uma imensidade de estrangeiros, que se deslocam cá. Não vamos passar a ceder os materiais, senão em situações muito precisas com objectivos muito bem definidos.”

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