A Leica já fez cem anos, mas a festa continua no Porto

Imagens de Jorge Silva Araújo, mas também de Victor Palla, Carlos Calvet, Gérard Castello-Lopes, Carlos Afonso Dias, Jorge Guerra e Paulo Nozolino, fazem desta uma efeméride que também é cá de casa.

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Nana, Place Blanche, Paris, 1961 © Christer Strömholm/Strömholm Estate, 2015
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Sidewalk, 1995 © Jeff Mermelstein
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Legs of Boxers, Duesseldorf, 1956 © Walter Vogel
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Man with bandage, 1968 © Fred Herzog/Cortesia de Equinox Gallery, Vancouver
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S/t, café Hawelka, Viena, 1956,1957 © Franz Hubmann
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Páginas da revista da Leica, de 1959, onde aparece o portfólio de Jorge Silva Araújo

Era uma promessa adiada, mas agora deixou de ser: na passagem pela Galeria Municipal do Porto, a exposição que celebra os 100 anos da Leica, a mítica marca alemã de câmaras fotográficas, incorporou um lote de peso de fotógrafos portugueses dos anos 1950/60. Entre eles, a grande novidade é a inclusão de imagens de Jorge Silva Araújo (1906-1995), um médico cirurgião apaixonado pela fotografia e pela Leica, que viu um portfólio da sua autoria nas páginas do primeiro número da revista oficial da marca, em 1959.

Para além deste, no núcleo A Leica em Portugal, há imagens de Victor Palla (1922-2006), Carlos Calvet (1928), Gérard Castello-Lopes (1925-2011), Carlos Afonso Dias (1930-2010) e Jorge Guerra (1936). Na fotografia contemporânea, a escolha recaiu sobre Paulo Nozolino, um fiel utilizador das câmaras da marca que ajudou a formar a cultura visual do século XX e que revolucionou o modo de criar fotografia.

Durante a preparação do jubileu da Leica, que se assinalou em 2014, cem anos depois do lançamento do primeiro protótipo da marca, Hans-Michael Koetzle esteve em Portugal para ver em pormenor o trabalho de alguns dos fotógrafos que usaram aquelas câmaras. Nessa altura, declarou-se “impressionado” com o que encontrou, mas apenas Castello-Lopes e Nozolino viriam a fazer parte da selecção final que chegou à exposição inaugural. Isto apesar de o ensaio da investigadora Emília Tavares incluido no catálogo nomear vários fotógrafos daquela época, bem como os fotolivros onde foi sendo publicada a sua obra.

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Sarajevo, 1997 Paulo Nozolino/Cortesia Galeria Quadrado Azul, Lisboa/Porto

Para a exposição do Porto (que se inaugura esta quarta-feira e fica aberta ao público até 5 de Fevereiro), Koetzle contou com a ajuda da conservadora de fotografia e novos media do Museu do Chiado na escolha das obras do grupo português de meados do século XX, que pode ser considerada uma das épocas douradas da história da fotografia em Portugal.  

Depositado no Museu do Chiado desde 2013, o espólio de Jorge Silva Araújo permanece praticamente desconhecido, tendo a última exposição das suas imagens acontecido em Julho de 1994, nos primeiros Encontros de Fotografia de Almada, onde se juntou a nomes firmados, como Victor Palla, e a “jovens promessas” da altura. Para Eyes Wide Open – 100 anos de fotografia Leica foram escolhidas três imagens que se, por um lado, exibem o enquadramento daquilo que era a fotografia típica dos salões e fotoclubes (moinhos com as pás em movimento), demonstram por outro uma vontade de romper com esse mundo estático e demasiado encenado, rumo ao dinamismo proporcionado pelas Leica (perspectiva ligeiramente picada sobre uma feira com dezenas de mulheres na Nazaré, grupo de freiras em Paris).

É uma escolha minimal, mas que permite perceber como pode ser redutora a classificação da fotografia de salão e os seus protagonistas “numa interpretação demasiado simplista associando-os sempre a um academismo serôdio e, por associação, a uma filiação ideológica generalista com o regime do Estado Novo”  nota Emília Tavares no ensaio do catálogo, dando conta das ambiguidades, dos avanços e recuos da fotografia portuguesa de meados do século passado em direcção a um modernismo fotográfico que muitos viriam a pôr em prática. Sobretudo com Leica, mas não só.

Entre esses “corajosos” estão, por exemplo, Carlos Calvet, e o seu estilo sequencial de captar (uma narrativa instantânea proporcionada pela facilidade de operar com Leica), a lembrar a cinematografia, ou a dupla Victor Palla/Costa Martins, no mergulho na realidade da capital nocturna e marginal que ficou plasmado em Lisboa, Cidade Triste e Alegre (1959), também protagonista nesta exposição com duas provas vintage de Palla e cópias daquele celebrado fotolivro.

Constelação de estrelas e de ícones   

Como seria de esperar de uma marca que se confunde com o suporte que ajuda a produzir, a exposição dos 100 anos da Leica (já visitada por mais de 150 mil pessoas na Alemanha, na Áustria e na Bélgica) é ao mesmo tempo uma viagem pelos principais movimentos/autores/estilos da história da fotografia do século XX. E quando isto se torna possível com uma ferramenta “tão simples” e “tão poderosa” como uma câmara fotográfica, percebemos a exacta medida do impacto que ela teve na construção da visualidade de todo um século. “A coisa boa deste ponto de partida é que é uma exposição verdadeiramente internacional. Imaginei como seria fantástico emparelhar diferentes culturas, diferentes abordagens, diferentes gerações, situações e momentos da história. A Leica foi uma câmara voltada para captar a história, as pessoas e a vida. Não é uma câmara de estúdio. É para sair à rua e captar a vida”, dizia o comissário em entrevista ao PÚBLICO antes da inauguração da exposição na Alemanha.

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Lisboa, c. 1960 Victor Palla/Cortesia MNACC

Depois de quase um século “presa” a um modo de fazer complexo, encenado e estático, a fotografia ganhou com a Leica dinamismo, simplicidade e poder de sequenciação, graças à feliz ligação que, em 1914, Ernst Leitz conseguiu fazer entre uma mecânica simples, uma óptica de elevada qualidade e uma película de 35mm de 36 exposições que se podiam mudar rapidamente na horizontal. E isto, que parece agora tão óbvio, abriu uma nova maneira de captar o mundo, tornou os fotógrafos mais ágeis, mais invisíveis – e “começou a ser possível experimentar”.

Depois dos primeiros protótipos, foi preciso esperar pelo fim da Grande Guerra para que a marca pudesse lançar um modelo comercial, o que só viria a acontecer em 1925. A partir de então, autores vanguardistas que gravitavam em torno da Bauhaus e artistas tão marcantes quanto Alexander Rodchenko começaram a usá-la, dando-lhe o impulso fundamental que a levaria, na década a seguir, para as mãos de fotojornalistas como Robert Capa ou David Seymour "Chim" (fundadores da Magnum) durante a Guerra Civil de Espanha (1936-1939).

Seguindo uma lógica de organização estética e procurando uma abordagem cultural do objecto fotográfico (com livros, documentos e filmes), a exposição que agora chega ao Porto (com um projecto expositivo e visual renovados, da autoria do arquitecto e fotógrafo Tiago Casanova) está dividida em 14 núcleos que vão do modernismo ao pós-modernismo, do New Vision à fotografia humanista, da fotografia de moda ao fotojornalismo, da fotografia de autor à fotografia de rua.

Entre os mais de cem autores apresentados há uma verdadeira reunião estelar (René Burri, Thomas Hoepker, Bruce Gilden, Nobuyoshi Araki, Christer Strömholm, Bruce Davidson, Fred Herzog, William Eggleston) e entre as centenas de imagens levadas até aos Jardins do Palácio de Cristal estão alguns dos maiores ícones fotográficos alguma vez criados. Por tudo isto, não deixa de ser paradoxal (e estimulante) que uma exposição com tamanha constelação (caso raro no panorama expositivo fotográfico em Portugal) mostre ao mesmo tempo pequenos pontos brilhantes, autores desconhecidos, como é o caso de Jorge Silva Araújo. Se neste caso, já estamos a descobrir a ponta do icebergue, outros há que mal sabemos que existem, como António José Martins (1882-1942), alguém que, nos anos 30, terá sido o principal responsável pela introdução da Leica em Portugal.

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Nazaré, c. 1958 Jorge Silva Araújo
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