"A lógica do sistema está pensada para aprisionar as pessoas"

Ken Loach, realizador de Eu, Daniel Blake, Palma de Ouro de Cannes, falou sobre o seu compromisso com o realismo e com a vida das pessoas “reais”. É alguém que ainda considera o cinema como um instrumento de combate.

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Loach na rodagem: a história de um homem, incapacitado por uma doença cardíaca, e da sua luta para convencer os serviços sociais de que está inapto para o trabalho

Eu, Daniel Blake conta a história de um homem, incapacitado por uma doença cardíaca, e da sua luta para convencer os serviços sociais de que está realmente inapto para o trabalho. É um retrato do “estado social” feito máquina trituradora de indivíduos. Em conversa telefónica, Ken Loach falou ao Ipsilon sobre os Daniel Blakes da vida real, sobre o clima político no Reino Unido e na Europa, sobre o seu compromisso com o realismo e com a vida das pessoas “reais”. É alguém que ainda considera o cinema como um instrumento de combate.

O seu filme anterior, O Espírito de 45, era um documentário sobre aqueles anos do pós-guerra em que se fundaram as bases daquilo a que se veio a chamar o “estado social”. De algum modo Eu, Daniel Blake funciona como um reflexo desse filme: eis o “estado do estado social”, contemporaneamente.
Faz sentido ver as coisas assim. Os anos a seguir à guerra foram anos de grande mobilização, em que existia um sentido de união verdadeiro, e as pessoas estavam motivadas para verem o que conseguiam fazer, todas juntas. E depois dos anos difíceis logo a seguir à guerra houve um tempo feliz na Grã-Bretanha, chegou a estar-se próximo do pleno emprego. Mas isso mudou com o tempo, os empregos começaram a perder, tornou-se difícil competir com a mão de obra barata de países como a China ou a Indonésia. E mais recentemente a sociedade passou a interessar-se pelas pessoas não como trabalhadoras, mas como consumidoras.

Mas referia-me, mais concretamente, à ideia de um sistema que era pensado para as pessoas parecer-se cada vez mais com um sistema contra as pessoas. É pelo menos a ideia que se tira de Eu, Daniel Blake.
Sim, absolutamente. A lógica do sistema está pensada na actualidade para aprisionar as pessoas, apanhá-las em falso. Há uma descriminação terrível nos centros de emprego, que tende a submeter as pessoas. É uma lógica mais importante do que haver ou não trabalho. Haver trabalho há, mas também há descriminação na forma como são filtradas as oportunidades. E há uma questão ideológica por detrás disto: tudo está feito para que as pessoas interiorizem que se estão desempregadas, é culpa delas, se são pobres, é culpa delas.

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Pensando no tempo que decorreu entre 1945 e os nossos dias, consegue definir um ponto claro de viragem, um momento em que se ultrapassou o “espírito de 1945”?
Há um momento crítico, que corresponde à eleição de Margaret Thatcher. Que entre outras coisas gerou, ou respondeu a, um movimento global da direita contra o welfare, contra o conceito de segurança social, opondo-lhe a ideia de “caridade”. Que é uma coisa horrível.

E recentemente, é inevitável mencionar isto porque se falou muito dos excluídos, dos que foram “deixados para trás”, que no fundo são pessoas como os protagonistas do seu filme, aconteceu o referendo do Brexit. Mas ninguém se entende quanto ao real significado do resultado do referendo…
A única coisa que se pode dizer com certeza é que é muito claro que as pessoas estão alienadas. Alienadas da política, seja a nacional seja a política à escala europeia, não sentem que ela represente os seus interesses. No caso da União Europeia é evidente que a sua natureza mudou; hoje é uma organização liberal, que põe os interesses do capital à frente dos interesses dos trabalhadores.

Posso saber qual foi o seu voto?
Eu votei “remain”. Não sou contra a ideia da União, sou contra aquilo que ela representa hoje, e penso que a luta se deve fazer dentro dela.

Vários filmes seus causaram eco profundo, às vezes muito agressivo, no seu país. Como foi a reacção a Eu, Daniel Blake?
A reacção da imprensa foi muito hostil, como é habitual. E não falo da crítica de cinema, falo em termos genéricos, artigos de opinião, editoriais, etc. Mas até por isso foi um filme muito discutido. Houve uma alteração, para melhor, às leis do desemprego já depois de filme ter sido estreado e o governo até foi acusado de andar a reboque. Mas não acredito nisso.

A sua geração, aqueles cineastas que se iniciaram nos anos 60, nasceu num compromisso muito forte com o realismo. Nunca se afastou muito desse compromisso.
Era uma ideia colectiva naquela década. Estávamos interessados em fazer dramaturgia contemporânea, que mostrasse como se vivia, como era o ambiente nas ruas, que se centrasse em gente real, que não era necessariamente a gente que mais interessava ao cinema. Ou à televisão, porque é preciso dizer que tudo isto começou na televisão.

Exactamente, e é quase inacreditável, pensando nos seus filmes ou nos de outros, que tenha havido vontade e espaço na televisão para eles. Não sei muito da televisão britânica actual, mas parece inimaginável hoje.
E é. A televisão mudou muito. Nos anos 60 tivemos liberdade para fazer os filmes que queríamos. Hoje, para fazer aprovar as mesmas ideias, seria preciso passar por uma burocracia interminável. E quase de certeza seriam rejeitadas.

Pelo menos da Europa continental associa-se o cinema britânico a uma preocupação realista. Acha que há uma razão cultural para isso ou foi fruto das circunstâncias?
Eu penso que há, e que a cultura realista sempre aqui esteve muito presente. Se pensarmos em Chaucer na Idade Média, depois mais recentemente em Dickens, vemos que há uma tradição literária preocupada com o realismo, e provavelmente os cineastas também beberam dela.

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