Por estes dias Isabelle Huppert é heroína anti-Trump

Assistir a Ela, de Paul Verhoeven, em Nova Iorque logo depois da vitória de Donald Trump sabe a catarse. Há na personagem uma determinação e uma luxúria que não encaixam no ideal feminino presente nos discursos do republicano.

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Domingo, uma e meia da tarde e um vento gelado a pôr fim a um Outono morno. No chão há um manto de flores amarelas. Não tarda as árvores do Soho vão ficar despidas. Quem anda na rua, corre para um refúgio. Assim se explica em parte a fila àquela hora no Angelika, em Houston Street, uma das três salas de Nova Iorque que exibem Ela, o filme de Paul Verhoeven onde Isabelle Huppert subverte o papel da mulher enquanto vítima. Foi também isso que escreveu o New York Times uns dias antes sobre a mais recente criação de Verhoeven, deixado no ar o desafio a quem o visse: afinal sobre o que é este filme?

Neste país, nesta cidade, menos de duas semanas após a vitória de Donald Trump, é quase impossível não o ver como um filme político. Em Ela, Huppert enquanto Michèle LeBlanc não é uma vítima qualquer e isso percebe-se mal o filme começa. Ela é violada e logo depois está a varrer os cacos com o ar de quem simplesmente põe ordem na casa. Limpar o sangue, tratar o corpo são coisas para depois e nunca de forma histriónica, nunca a vítima a pedir socorro. Quer defender-se e há nela uma determinação e uma luxúria que não encaixam no ideal feminino presente nos discursos do candidato republicano e que tem levado muitas mulheres, da política às artes, a manifestarem preocupação acerca do que é que a eleição de Trump pode representar enquanto recuo em direitos conquistados pela mulher na (ainda) puritana sociedade americana. O próprio Verhoeven tem sublinhado isso, quando por várias vezes afirmou que nenhuma actriz americana aceitaria um papel tão amoral como o que Huppert representa.

Huppert enquanto LeBlanc é uma mulher de sucesso, independente, divorciada, com uma vida sexual que desafia os padrões do bom comportamento feminino à imagem do Cristianismo que Trump quer ver valorizado e ensinado. Enquanto vítima de violação, rompe com o cliché e usa perversão e frieza para lidar com uma condição que para ela não é nova. Justamente a de vítima. Ela, àquela altura, é uma vítima experiente que não arranca ao espectador qualquer sentimento de piedade, antes o envolve numa teia de suspense e de emoções ambíguas

Acrescente-se então outra pergunta: o que sentimos por Michèle LeBlanc, ou antes, o que é que LeBlanc nos faz sentir?

Primeiro, perplexidade e incómodo. Mas, a ver tanto pelas gargalhas nervosas ou pelo silêncio mais absoluto cortado pelos gritos na sala a legitimar a ironia ou o efeito de suspense do trabalho de Huppert e Verhoeven, empatia. Não há nada de sobrehumano ou desumano no comportamento desta mulher que aparenta extraordinária serenidade ao ser objecto de violação. Talvez a ideia a sublinhar seja essa: a de uma reacção contra a sua objectificação. E nisso Huppert enquanto LeBlanc é muito humana. Porque ambígua, complexa, impaciente, num jogo perigoso de aproximação e recuo com o mal. Quando, mesmo não nos olhando nos olhos, parece falar ao mais íntimo de cada um de nós, os sentados naquela sala, dizendo qualquer coisa como: desde quando é que a culpa ou a vergonha nos impediu de obedecer a impulsos? E quando expõe até ao ridículo clichés associados à virilidade, transformando os seus protagonistas – homens que pensam que sabem o que é o corpo e o prazer femininos - em figuras menores. Tanto riso – soou quase cúmplice - no momento em que o amante lhe disse que o sexo fora esplêndido por ela decidir fazer-se de morta.

Assistir a Ela em Nova Iorque logo depois da vitória de Trump sabe a catarse. Ela não é uma heroína clássica, o seu triunfo está em desafiar a norma, sem que isso seja um objectivo em si, mas apenas consequência de uma determinação. Nisso parece ser coerente com a sua história, mas ela não nos deixa saber tudo sobre o seu passado nem o filme quer fazer psicologia sobre isso. Ela surge assim, este filme é o do seu presente, com o passado a espreitar mas não ao ponto de justificar, perante nós, qualquer acto. Enquanto espectadores, temos muito para saber sobre ela. Mas não é sempre assim, sobre nós e sobre nós e os outros? Já o filme terminado, luzes ainda apagadas, alguém dizia: “Não é ela um orgulho para todos nós?” A autora da frase foi uma mulher, mas o “nós” a que se referia não tinha género. Humana, Huppert, na sua vingança fria, ou na perversidade, no modo como avança quase sempre egoísta, solitária, às vezes triste, questiona moral, costumes, papéis sociais, provoca-nos enquanto indivíduos. Com tudo isso, ela parece só querer apaziguar-se. E nós?

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