O escritor e a realidade como ecrã dividido a meio

Etgar Keret trata a realidade por “tu”, descrevendo-a como quem luta para a conhecer. Mesmo quando o filme é demasiado horrível, porque real.

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Enric Vives-Rubio

Sete Anos Bons surge como uma sequência de narrativas breves, que deixam a categoria de não-ficção permeável à capacidade efabuladora do autor e à arte da sua memória. O que faz desta obra uma espécie de jornalismo da subjectividade. Fiel aos factos, mas vincadamente pessoal. O livro evoca a época da sua vida em que o autor esteve mais próximo do filho e em que, ele próprio, continuou a ser filho, por ter ainda vivo o pai. Um tempo que sobrou da sua entrada na idade adulta e precedeu a plena maturidade em que agora se encontra, prestes a completar 50 anos de idade.

Escritor consagrado, leitor sobremaneira atento da realidade israelita, Etgar Keret expõe, entre a serenidade e uma tensão sempre latente, uma realidade multifacetada e violenta, complexa e nem sempre clara para o olhar exterior. Keret fala com extrema generosidade do trabalho de tradução. Diz ser dos que consideram que a obra traduzida pode ser melhor do que o original. “Uma tradução”, diz-nos, “não é como verter um líquido da taça do hebraico para a taça do inglês, ou do português”.

Recentemente, publicou no site Buzzfeed um conto situado no futuro, no qual Donald Trump era eleito pela terceira vez para a Presidência da República. Isso parece-lhe uma distopia, ou um quadro que se pode concretizar [a entrevista decorreu antes das eleições que deram a vitória a Trump]?
Em primeiro lugar, penso que ele pode facilmente ser eleito. Claro que não queria que isso acontecesse. Mas tenho de dizer que a publicação do Buzzfeed me ensinou uma lição. O conto foi primeiro publicado em Israel, e na sua origem está o facto de o meu filho ter começado a brincar com Pokémon. Eu, como pai preocupado, fui pesquisar na Internet, para saber qual era o modelo de negócio por trás daquilo. Eles não pedem dinheiro… Talvez lavagem ao cérebro, pensei. Depois, percebi que o modelo consistia em ir às empresas, como a McDonald’s, ou a Pizza Hut, e dizer-lhes: ´"se vocês nos derem dinheiro, nós pomos o Pokémon mais precioso no McDonald’s." Por isso, o miúdo pede ao pai para ir ao McDonald’s. Então, pensei para mim mesmo: que analogia poderia haver para isto? Poderia ser com o Exército. "Nós pomos um Pokémon em Mossul e, se te alistares no Exército e lutares lá, poderás ficar com ele como prémio." Eu não poderia situar a história em Israel, porque em Israel não precisamos de desculpas. O serviço militar é obrigatório, não tem de se convencer ninguém; vamos para não irmos para a prisão. Por isso, situei-o na América. E pensei: “Preciso de um futuro em que a América vá estar em guerra; e há muito mais probabilidades de isso acontecer com o Trump Presidente, creio eu.” Mas toda a sensibilidade do conto tinha que ver com Pokémon, não com o Trump. Por isso, quando o publiquei em Israel, obtive muitas reacções acerca dos Pokémon. Mas quando o Buzzfeed publicou o texto, pôs uma fotografia enorme do Trump e algumas frases: “Isto é o que vai acontecer se Trump ganhar as eleições.” É claro que os Americanos estão muito mais preocupados com as suas eleições do que o resto do mundo, embora elas digam respeito a todos, por isso, de repente, a leitura do texto mudou completamente. Não é que eu não ache o Trump perigoso, mas nunca na minha vida escreveria nenhum texto cujo fundo fosse “vota neste, não votes naquele”. Acho que isso é insultuoso para o poder da literatura. É degradante para um conto usá-lo para um fim pragmático. E o que o Buzzfeed fez foi usá-lo assim. Não estou zangado com eles, mas aprendi que, ao publicar alguma coisa sobre um tema sensível, tenho de pedir ao editor que me mostre como vai apresentar o meu texto. Aprendi que tenho de ter mais cuidado. Quando o Obama era candidato, nas últimas eleições, escrevi um artigo de opinião a dar-lhe o meu apoio; mas existe uma diferença entre escrever um artigo de opinião e um conto. Para mim, um conto é como entrar num local sagrado, como uma igreja, ou uma sinagoga. Temos de nos comportar de forma diferente. Quando dou aulas, digo sempre aos meus alunos que aquilo que torna os livros tão omnipotentes é eles não servirem para nada. Não podemos cortar pão, nem cozer um ovo com eles. Não podemos usá-los para caçar, nem para nos defendermos. E é por eles não terem uma função que são todo-poderosos. Se eu escrever um conto cujo propósito é que você me faça um bolo, então não devia escrever um conto, mas pedir-lhe que me faça um bolo.

As primeiras linhas deste novo livro parecem descrever uma espécie de não reacção a um ataque terrorista. Acha que isto acontece muito: as pessoas ficarem dessensibilizadas em relação a estes acontecimentos?
Sabe, é curioso você dizer isso. Faz todo o sentido de um ponto de vista europeu. Mas tenho de lhe dizer que nunca ninguém me fez essa pergunta. E antes de você me ter perguntado isso, eu nem me tinha apercebido. Do mesmo modo que um tipo inglês não ligaria nada ao mau tempo. O mesmo se dissermos a um norueguês: “Que dia frio, hein?” Acho que a realidade em Israel é de tal ordem, não digo que sempre, mas pelo menos nos últimos tempos, que os ataques terroristas nem sequer chegam às parangonas dos jornais. Mais ou menos na altura em que o meu filho nasceu, quase todos os dias havia um bombista suicida. Então, a certa altura, houve um jogo no campeonato de futebol da liga israelita. Dez minutos depois do arranque, houve um ataque bombista, e interrompeu-se o desafio. As pessoas começaram logo a reclamar: “Então, que c*****?” “Mas morreram pessoas”, disse-se na altura. “E então? Morrem pessoas todos os dias. Vamos parar de ver futebol?”, foi a resposta. Nessa momento, o canal de televisão passou a mostrar imagens do jogo. A reacção não tardou: “Então, que c*****? Há pessoas a morrer, e mostram futebol?”

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Leitor atento da realidade israelita, Etgar Keret expõe, entre a serenidade e uma tensão sempre latente, uma realidade multifacetada e violenta, complexa e nem sempre clara para o olhar exterior Enric Vives-Rubio

Como no episódio do táxi, em Sete Anos Bons. Para convencer o taxista, o narrador diz que há gente a morrer.
Sim, o táxi! É isso mesmo. Nessa altura, o canal decidiu dividir o ecrã a meio: metade com o jogo, metade com mortos, pessoas a serem levadas em macas, ou postas em ambulâncias. E ambos os lados com som. Portanto, numa das metades uma mulher chorava pelo marido, e na outra a multidão celebrava um golo. Na altura, escrevi um artigo em que dizia: “Este é o estado de espírito dos israelitas. Dupla personalidade: metade em zona de guerra, metade a viver num país normal. Vamos à ópera, ao cinema, certificamo-nos de que os nossos miúdos brincam com brinquedos de madeira, porque o plástico… Mas ao mesmo tempo, não só temos de ir à tropa, como ficamos 20 anos na reserva. Por isso, o mesmo tipo que é vegano, porque acha que é errado matar animais, ou um activista pela paz, pode, dez dias por ano, ser um atirador furtivo, a alvejar e matar pessoas. Enquanto me encontrava a cumprir o serviço militar obrigatório, quando tinha folga, despia a farda e manifestava-me contra o Governo e o Exército. No dia seguinte, voltava a fardar-me e podia ter de ser eu a controlar os manifestantes (isto é um exemplo: por acaso, nunca tive de o fazer). É completamente esquizofrénico. Muitas vezes, acho que Israel é um país com stress pós-traumático. Mas se eu disser isso em Israel, dizem logo que eu sou um piegas. Estamos a falar de um país de pequena dimensão. Quando uma bomba explode em Telavive, se eu não conhecer o irmão da pessoa que morreu, conheço uma pessoa que trabalhou com ele. Essas ondas de violência, dor, xenofobia, alastram-se e afectam tudo e todos. Mas, se formos a andar pela rua, ninguém está disposto a admiti-lo.

Que efeito tem isso num escritor?
Em primeiro lugar, e isto parece muito pretensioso, eu sei, mas tenta-se tocar a verdade. A ficção tem mais oportunidades de tocar a verdade, porque não é real, não tem consequências. Há qualquer coisa na esfera da escrita que permite a honestidade, e o escritor quer procurá-la. Por isso, quando se vive num lugar como Israel, há sempre uma tentativa de ir para lá da barreira do fingimento e tocar a verdade. Quando comecei a escrever, um escritor israelita muito famoso, de uma geração anterior à minha, A. B. Yehoshua, acusou-me de falar de stress, violência e ansiedade, problemas que não existiam, segundo ele, na sociedade israelita. Dizia ele que eu os imitava de filmes de acção. “Em que é que este tipo quer transformar o nosso país?” Creio que a reacção dele foi genuína. A maior parte das pessoas querem suprimir o que vêem à sua volta. Mas eu creio que o papel de um artista é, em primeiro lugar, ser empático, perante pessoas em sofrimento e, depois, ser quase como um cão de caça à procura da presa – sempre que se vê alguém a dizer uma coisa e a fazer outra. É como se eu fosse um detective privado contratado por uma entidade estranha e encarregado de perceber que diabo se passa aqui.

Ao longo do livro, fica-se com a ideia de que tem modelos muito importantes para a sua vida. O seu irmão, que é como um ídolo, a propósito de quem escreveu o texto Idolatria, de Sete Anos Bons. Ou o seu pai, cuja resiliência e espírito de iniciativa parece admirar muito. Um dos textos de Sete Anos Bons chama-se mesmo Nas Pegadas do Meu Pai. E na literatura, quais são os seus modelos?
Acho que todos os escritores que eu concebo como bons me ensinaram alguma coisa. Quando se escreve, está-se numa espécie de espaço infinito, como uma planície que se estende a perder de vista. Mas a nossa tendência é para nos limitarmos a um campo muito pequeno. Muitos escritores que eu adoro não têm nada que ver com a forma como eu escrevo, mas eu admiro a ideia, que eles me transmitem, de que a escrita é um lugar mais vasto do que aquilo que eu pensava. Eu cresci em Israel, e a literatura israelita é excelente, mas a ideia clássica de escritor é alguém como, digamos, Amos Oz, que, basicamente, assume o papel de um profeta, um profeta laico. Alguém muito inteligente, sábio, muito moral, que nos mostra o caminho. Enquanto crescia, pensava que isto é que era um escritor. Portanto, é claro que pensei que nunca poderia ser escritor. Não sou suficientemente inteligente, não sei o caminho e, certamente, não sou suficientemente moral. Logo, devia procurar outra ocupação. Mas, depois, li, por exemplo, Kafka. E disse para mim: por um lado, este tipo é um grande escritor, mas, por outro, não dá resposta nenhuma, nada. Só me enche de mais ansiedade e medos. E, acima de tudo, não há relação nenhuma entre ser uma pessoa competente e ser-se escritor. Este tipo, Kafka, não confiava nele para tomar conta do meu filho, nem o deixava levar-me de carro para o aeroporto. Mas, ao mesmo tempo, põe o meu mundo de pernas para o ar, por isso um escritor pode ser outra coisa. Talvez eu possa ser escritor, pensei então. E talvez um escritor não tenha de dar respostas, mas apenas dar o suficiente de si para suscitar ainda mais dúvidas e perguntas. E há sempre motivações diferentes para escrever. Há quem o faça por ter uma verdade que quer partilhar; há aqueles que escrevem porque têm medo e acham que, escrevendo, terão menos; por vezes, escreve-se para lutar contra a solidão, ou para tornar a vida mais excitante, alargar o seu próprio mundo.

E no seu caso, porque escreve?
Acho que por todos estes motivos e mais. Eu sou um homem com dois poderes em conflito. Cheio de desejos, no limite da criminalidade. Se eu fizesse o que me apetece, roubava nas lojas, beijava mulheres bonitas na rua, fazia coisas horríveis. Por outro lado, não sei se pela minha educação, sou alguém que não pretende fazer mal a ninguém. Por isso, acho que este choque de contrários encontra uma cela almofadada e segura na escrita.

O papel da literatura é ir buscar o outro. O estupor que lhe ficou com o lugar de estacionamento, o tipo que o empurrou na fila, o filho da mãe que lhe tirou o emprego. E, por um momento, nós somos esses tipos. Não justificamos o que eles fazem, mas assumimos aquele papel e admitimos que eles são humanos. Quando eu era miúdo, os filmes de ninjas eram muito populares. E o que é que os tornava tão populares? É que se matava alguém sem rosto, quase como se aquela pessoa não existisse. Há um conto muito bonito, da escritora israelita Orly Castel-Bloom, chamado A Mulher Que Queria Matar Alguém. A personagem queria experimentar a sensação de alvejar alguém e ver a pessoa a deslizar de encontro a uma parede, como num filme – mas não queria que ninguém morresse. E a questão é essa. Temos o impulso, mas opomo-nos às consequências. O que eu sinto é que, muitas vezes, os protagonistas das minhas histórias fazem aquilo que eu desejava fazer, mas pago um preço para não fazer. A escrita é um laboratório para esses desejos e emoções.

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