Mundo Árabe – Limites da Democracia ?

A confusão entre “árabes” e “islâmicos” é substancial. Os árabes existiam muito antes do Islão. Embora a maioria hoje seja muçulmana, muitos não o são. Por outro lado, a maioria dos muçulmanos não é árabe, designadamente centrada em países como a Indonésia, o Paquistão, o Bangladesh ou o Irão.

O mundo árabe, que, com 450 milhões de indivíduos, representa apenas 6% da população mundial, adquiriu uma influência internacional que, em parte, decorre do facto de muitos dos seus países deterem relevantes reservas de petróleo e gás natural, num mundo em forte crescimento económico e demográfico em que o património energético é uma fonte de poder. Se as atuais convulsões em nações árabes se registassem na Arábia Saudita, por exemplo, a fortíssima subida do preço do petróleo lançaria o mundo no maior choque petrolífero de sempre, com economias em recessão, desemprego e tensões sociais em todo o mundo. Vivemos numa sociedade mundial interativa e interdependente. O Ocidente já cometeu demasiados erros, detendo uma grande responsabilidade pela tenebrosa guerra civil na Síria.

É difícil questionar a óbvia necessidade de mudança no disfuncional mundo árabe. Em geral, estes países foram colónias ou protetorados, regiões povoadas por imensas tribos rivais e sem uma identidade nacional como nós a entendemos. Burocratas sentados em gabinetes dos países colonizadores traçaram linhas em mapas, que viriam a ser as fronteiras daquilo que hoje conhecemos como países árabes. Isto é, muitos países árabes existem como unidade política artificial, à qual não corresponde uma genuína unidade sociológica ou uma identidade nacional. Em muitos casos cada clã ou tribo rejeita ter os seus valores e interesses referendados por outras e (com razão) teme que grupos mais numerosos usem eleições para legalizar uma ditadura sobre as minorias.

As sociedades árabes não incorporam apenas clivagens tribais. Estes países adoram ostentar, perante o mundo, a “unidade árabe”. É uma unidade que não existe. Pelo contrário, são generalizados os ódios e as desconfianças recíprocas. São profundas e frequentemente agressivas as fissuras entre sunitas e shiitas, como o são as que dividem muçulmanos e minorias cristãs. Uma súbita democracia formal pode, em diversos casos, conduzir a uma brutal repressão exercida por uma maioria sobre as minorias. Obviamente esta é uma questão existencial da própria democracia. Na Jugoslávia apenas a liderança moderadamente autocrática de Tito permitia unir o país heterogéneo de um modo aparentemente harmonioso. Quando Tito faltou eclodiram guerras civis e bárbaros genocídios como o da Bósnia. No Rwanda foi uma maioria democrática que chacinou a minoria Tutsi. A democracia tem que ser introduzida com sensatez e de um modo que beneficie os povos, em lugar de, em nome da elegância intelectual do Ocidente, lhes trazer a guerra ou piores estilos de repressão. A estratégia míope seguida pelo Ocidente nos casos líbio e sírio criou a guerra civil, com uma brutalidade muitíssimo pior que a dos regimes anteriores. As escolhas democráticas nem sempre têm a simplicidade que os políticos ocidentais imaginam.

A dependência do dinheiro fácil gerado pelo petróleo enquistou o desenvolvimento económico de muitas nações árabes. Na maioria destes países quase não existe sector transformador e os serviços são um sector recente em alguns. Apesar das receitas petrolíferas, o desemprego é geralmente elevado porque falta atividade produtiva, o que é delicado para mais de metade da população árabe, que tem menos de 25 anos.

Em alguns destes países é palpável o risco de o poder ser tomado por extremistas, que seria um grave fator de insegurança internacional.

A luta antiterrorista no terreno é frequentemente ingénua. Tomemos um exemplo. O disparate da intervenção militar ocidental para derrubar Khadafi foi como semear gasolina no meio de um incêndio. Se analisarmos a informação recolhida no terreno (inclusive os registos da al-Qaeda em Sinjar) sobre o fluxo de elementos terroristas que a al-Qaeda e depois o ISIS recrutaram para, desde 2003, praticar horrores no Iraque e na Síria, constatamos que o país que “forneceu” mais terroristas foi a Arábia Saudita e, em segundo lugar, a Líbia. Mas se calcularmos a percentagem desses terroristas em proporção da população de ambos os países verificamos que a Líbia esteve em primeiro lugar, com um índice duplo do da Arábia Saudita e muitíssimo superior a todos os outros países onde a al-Qaeda recrutou. Foi da Líbia que chegou cerca de 1 quinto de todos aqueles terroristas. Mas estes terroristas líbios vieram predominantemente de uma linha que une Benghazi a Tobruk, passando por Dernah. O número de terroristas procedentes de Dernah foi 9 vezes superior ao dos que partiram da Jordânia, 7 vezes ao caso da Síria e 9 vezes o número proveniente do perigoso Iémen. O cérebro desta teia da al-Qaeda localizou-se em Benghazi que, não por coincidência, foi o epicentro do movimento rebelde. O que o derrube de Khadafi pelo Ocidente fez foi oferecer a liberdade do caos absoluto aos extremistas.

É constrangedor, nestas matérias, assistir à ingenuidade quase generalizada das diplomacias europeias.

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