Mas afinal o que é que o musical Hamilton tem?

Um musical de hip-hop, que foca o nascimento da nação americana, deleitou um Presidente americano e provoca agora a fúria noutro, num vendaval de afirmações divergentes que retratam a divisão da era Trump.

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Actor de musical pede a vice-presidente dos EUA para defender todos os americanos

Foi um dos temas do fim-de-semana. Na sexta-feira o vice-Presidente eleito norte-americano, Mike Pence, foi à Broadway, em Nova Iorque, ver o musical Hamilton, tendo sido vaiado e interpelado no final pelo actor Brandon Dixon, que leu uma declaração em forma de apelo: “Esperamos que este espectáculo o tenha inspirado a defender os valores americanos e a trabalhar para o bem de todos nós”, ouviu-se às tantas, enquanto era recordado que a história americana ali relatada só havia sido possível porque foi “contada por um grupo diverso de homens e mulheres, de diferentes cores, credos e orientações.” O resto da episódio é conhecido.

Donald Trump não gostou do ocorrido e publicou no Twitter que Pence havia sido “acossado” e acusou o elenco do musical de ter sido “muito rude” para “um homem muito bom”, exortando a um pedido de desculpas. O actor Brandon Dixon utilizou também as redes sociais para dizer a Trump que “conversar não é assédio”, ao mesmo tempo que elogiava Pence por ter escutado. Já o próprio Pence pareceu relativizar o sucedido, afirmando no domingo que não se sentiu ofendido “com o que foi dito”, adiantando que tinha “apreciado o espectáculo”, deixando ao mesmo tempo uma mensagem política: “O Presidente eleito será o Presidente de todos.”

Talvez. Mas a verdade é que o ocorrido veio evidenciar a divisão do país na era Trump, com as etiquetas no Twitter a repartirem-se entre menções satíricas ao passado ultraconservador de Pence ou a clamores de vingança e de boicote ao musical, lançados pelos apoiantes do novo Presidente. Por sua vez organizações defensoras dos direitos civis protegeram o respeito pela liberdade de expressão reconhecido na constituição do país. “Os americanos não necessitam de pedir perdão, nem sequer a Presidentes ou vice-Presidentes, pelo exercício apropriado e lícito dos seus direitos constitucionais”, respondeu a Trump, a American Civil Liberties Union.

Já esta segunda-feira, em declarações à CBS, o actor Brandon Dixon, que na peça faz de Aaron Burr, o terceiro vice-Presidente americano, repetiu que não existe motivo para pedido de desculpas. O actor, que integra um elenco multirracial, apesar das figuras históricas que desempenham serem brancas, voltou a defender a declaração de sexta-feira, asseverando que “apenas quiseram difundir uma mensagem de amor e unidade”, depois de uma campanha eleitoral onde vieram ao de cima divisões profundas.

Por sua vez, os defensores de Trump carregaram contra aquilo que consideram ser o “ódio” da esquerda pelos brancos. “A arrogância e hostilidade do elenco de Hamilton vem recordar-nos que a esquerda ainda está em luta”, disse no Twitter, Newt Gingrich, ex-presidente da Câmara de Representantes e possível futuro membro do Governo de Trump. Mais radical foi David Duke, ex-líder do Ku Klux Klan, que escreveu que “o Presidente Trump deveria cortar todo o financiamento para as artes a estes anti-brancos.”

O incidente tomaria estas proporções se o espectáculo fosse outro? É pouco provável. É que Hamilton conta a história do “nascimento” dos Estados Unidos dando ênfase à ideia de “país multicultural”, fazendo-o com actores brancos, negros e hispânicos nos papéis de fundadores da nação, como Alexander Hamilton ou George Washington. O musical foi criado por Lin-Manuel Miranda, que apoiou a candidata derrotada, Hillary Clinton, que aliás viu o aclamado espectáculo, o mesmo acontecendo com Obama – diga-se que Miranda chegou a actuar na Casa Branca em 2009, já aí evidenciado paixão pelo hip-hop, com Barack e Michelle Obama no público.

Hamilton não é um musical qualquer, utilizando os ritmos e a linguagem vernacular do hip-hop, para reflectir a história americana, com diálogos rápidos e uma mistura de referências da cultura popular actual e da história americana mais fundadora. O musical bateu desde o ano passado recordes de bilheteira e ganhou um Pulitzer em Drama e onze prémios Tony. Numa entrevista recente, Lin-Manuel Miranda partilhava os discos de hip-hop e R&B que anda a ouvir e ficámos a saber que os últimos álbuns de Common, A Tribe Called Quest e Alicia Keys não têm saído do seu leitor de CDs.

O musical, que já não precisava de publicidade – está esgotado há meses – vai chegar à Europa, mais exactamente a Londres, no próximo ano, tudo indicando que nos próximos dias a polémica venha a esvaziar-se um pouco. Afinal, dizem os mais cínicos, esta polémica até beneficiou Trump, desviando as atenções de uma outra: o acordo firmado, na ordem dos 25 milhões de dólares, para encerrar os processos por fraude contra a sua universidade alegando que, com as novas responsabilidades, não terá muito tempo de ir a tribunal.

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