A Barcelona de Carlos Ruiz Zafón está de regresso

O Labirinto dos Espíritos chega esta quarta-feira a Portugal. E assim se encerra o ciclo da saga começada em 2001 com A Sombra do Vento e que se tornou um fenómeno de culto à escala mundial.

Foto
A Barcelona pobre dos anos do Franquismo é o cenário dos quatro romances da saga de Carlos Ruiz Zafón BERT HARDY/GETTY IMAGES

Há 15 anos, os editores não acreditavam que uma história com literatura e livreiros no coração da intriga pudesse ter sucesso. Mesmo assim, decidiram publicá-la. E o fenómeno de culto começava. Carlos Ruiz Zafón lançava A Sombra do Vento e tornava-se um dos autores espanhóis mais vendidos no mundo inteiro. A saga continuou com O Jogo do Anjo (2008) e O Prisioneiro do Céu (2011). Em 2012, Zafón afirmava em entrevista ao PÚBLICO que esperava ter a quarta parte da saga terminada em dois anos. Foi necessário afinal mais tempo do que previa. Escreveu e rescreveu o último livro até lhe parecer que correspondia às expectativas dos leitores. O fim da tetralogia O Cemitério dos Livros Esquecidos chegou com O Labirinto dos Espíritos, que a partir desta quarta-feira está disponível em tradução portuguesa, editada pela Planeta. Zafón virá pessoalmente apresentar o livro a Lisboa (Salão Nobre da Academia de Ciências) às 17h do dia 11 de Dezembro, numa conversa aberta ao público com o jornalista da Antena 2 Luís Caetano, seguida de sessão de autógrafos.

“Naquela noite sonhei que voltava ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Voltava a ter dez anos e acordava no meu antigo quarto para sentir que a recordação do rosto da minha mãe me tinha abandonado. E, desse modo, como se sabe as coisas nos sonhos, sabia que a culpa era minha e só minha, porque não merecia recordá-lo, porque não fora capaz de lhe fazer justiça."

É assim que começa O Labirinto dos Espíritos. Em entrevista ao canal de televisão espanhol Antena 3, Zafón afirmou que foi o volume que mais lhe custou escrever, mas também o que lhe deu mais satisfação. Os quatro livros são independentes uns dos outros e podem ler-se pela ordem que se quiser, mas têm personagens em comum e um espaço transversal a toda a saga: uma biblioteca fantástica, o Cemitério dos Livros Esquecidos, que dá nome à tetralogia. Une-os ainda outro aspecto: em cada história há um livro dentro do próprio livro.

A ideia do Cemitério dos Livros Esquecidos surgiu quando o escritor reflectia em Los Angeles sobre a quantidade de coisas que todos os dias se perdiam ou esqueciam. Daí surgiu a imagem de uma biblioteca especial, destinada a guardar os exemplares de tantos livros abandonados pela cidade mas cativos na alma dos seus leitores. Uma imagem que neste livro é explorada mais a fundo, ao longo das mais de 800 páginas que reúnem as personagens de toda a saga, de David Martín a Julián Carax, e ligam finalmente as pontas soltas dos diversos enigmas espalhados pelos anteriores volumes.

Em O Labirinto dos Espíritos, os leitores voltarão a encontrar Daniel Sempere e Fermín Romero de Torres, protagonistas da saga. Daniel tenta resolver o mistério da morte da mãe, mas as respostas só serão encontradas com o aparecimento de uma nova personagem que terá um papel determinante na história: Alicia Gris, sobrevivente dos bombardeamentos da Guerra Civil Espanhola, que comanda uma investigação sobre o ministro Mauricio Valls, agora desaparecido. No entanto, descobrir os segredos da história da família Sempere terá um preço a pagar. 

Zafón, em entrevistas à imprensa espanhola, destacou a nova personagem Alicia Gris como uma das suas criações favoritas, inspirada na Alice de Lewis Carrol. É, diz o autor, uma Alicia “na Barcelona das maravilhas, que afinal é uma Barcelona de trevas”, a Barcelona sob o regime franquista, da miséria, da censura e da fome. No entanto, se há uma personagem emblemática de todos os livros, arriscamo-nos a dizer que é Fermín, o mendigo que é “a voz da consciência” e a personagem picaresca da saga. É de tal forma importante que teve direito a uma carta de despedida de Zafón, publicada no jornal espanhol El País. Zafón diz a Fermín que ainda se lembra do dia "em que o encontrou a caminho do Cemitério dos Livros Esquecidos" e relembra a sua capacidade de roubar a cena ao protagonista Daniel Sempere. Despede-se dizendo que chegou o grande final e que a aventura literária “valeu a pena”. Há personagens que nunca abandonam os seus autores.

Foto
Carlos Ruiz Zafón em 2012, de passagem por Lisboa DANIEL ROCHA

A máquina de bestsellers

Zafón é uma máquina de fazer bestsellers. Só em Espanha, O Labirinto dos Espíritos teve uma primeira edição de 700 mil exemplares, e isto apenas em espanhol, já que se lançou simultaneamente uma edição em catalão com uma tiragem de 50 mil exemplares. Serão milhares de edições um pouco pelo mundo inteiro. Em Portugal, outro país rendido aos livros de Zafón, foi A Sombra do Vento, actualmente incluído no Plano Nacional de Leitura, o volume que mais vendeu até ao momento.

Uma das principais razões do sucesso de Zafón é a forma como escreve. Mesmo nos livros juvenis com que começou a carreira (O Príncipe da Neblina, O Palácio da Meia-Noite, As Luzes de Setembro e Marina), já se notavam, além da intriga de aventura, elementos fantásticos e um certo tom de mistério e melancolia que caracteriza O Cemitério dos Livros Perdidos. Mas também a convergência entre realidade e ficção, os diálogos rápidos e intensos, e as diferentes vozes narrativas, com histórias dentro da história principal.

Surpreendentemente, apesar dos aspectos cinematográficos da escrita de Zafón e do sucesso internacional que tem, nenhum livro seu foi transformado em filme. “Já mo propuseram várias vezes. Mas está bem que, por uma vez, um livro fique como está, sem uma adaptação cinematográfica”, afirmou o autor na Feira do Livro de Guadalajara, México, em 2004. Este mês, na apresentação à comunicação social espanhola do quarto livro, sublinhou o que dissera anteriormente, garantindo que “nunca" vai haver um filme de O Cemitério dos Livros Esquecidos. No entanto, já houve uma “adaptação musical” do primeiro livro, para o qual Zafón compôs uma série de temas ao piano para diferentes personagens e situações, já que, diz frequentemente, compor o ajuda a escrever. A banda sonora de Zafón foi apresentada no Palau de la Música, em Barcelona, em 2014.

Como seria de esperar, o sucesso mundial do escritor também vive on-line. No Twitter e no Instagram há milhões de publicações com frases ou referências ao autor. No YouTube, são mais de 57 mil os vídeos sobre Zafón e as suas obras. E Zafón é ainda um dos 25 nomes mais associados ao hashtag #livro na Internet e nas redes sociais por todo o mundo.

Uma cidade para ser lida

Toda a saga de O Cemitério dos Livros Esquecidos tem lugar em Barcelona. Apesar de viver actualmente em Los Angeles, nos Estados Unidos, e de aí ter começado a escrever a tetralogia, foi Barcelona a cidade escolhida para os mistérios da saga. Ainda que em O Labirinto dos Espíritos haja momentos em Madrid e em S’Agaró (Costa Brava), é Barcelona que continua a ser o espaço principal da obra. Uma Barcelona que não é a Barcelona dos turistas, mas uma cidade misteriosa, entre o real e o fantástico, quase uma personagem também, com alma própria.

A presença dominadora da cidade na tetralogia e a carga mística que Zafón nela inscreveu atraem visitantes curiosos por percorrer a mesma Barcelona das personagens dos quatro romances, havendo já visitas guiadas que são verdadeiros roteiros literários com base nas obras de Zafón, percorrendo maioritariamente o Bairro Gótico, no centro da cidade. E existe mesmo um Guia da Barcelona de Carlos Ruiz Zafón, livro de Sergi Doria baseado em Marina, o último dos livros juvenis de Zafón, sem ligação com a tetralogia, e nos dois primeiros volumes de O Cemitério dos Livros Esquecidos. Não pretende ser um guia turístico, mas sim um passeio pela cidade através dos livros de Zafón.

No primeiro livro da saga, lia-se pela voz de Fermín que Barcelona era uma cidade feiticeira, “que nos rouba a alma”. Essa ideia continua pelos volumes seguintes; a frase chega mesmo a ser repetida neste livro que encerra a tetralogia. Como se fosse o único lugar em que aquela aventura pudesse acontecer. Assim parece ser com Zafón. Por mais longe que esteja de Barcelona, é aquele o lugar da escrita. E o lugar que ficará para sempre na imaginação dos leitores.

Texto editado por Inês Nadais

Sugerir correcção
Comentar