“Com Sissi, temos a repressão de Kadhafi sem o petróleo de Kadhafi”

Gamal Eid é o mais conhecido dos advogados de direitos humanos do Egipto. Aos 52 anos, já esteve preso várias vezes e foi torturado. Está impedido de deixar o país.

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Concentração este sábado, à porta do Sindicato dos Jornalistas, no Cairo MOHAMED EL-SHAHED/AFP

Em quase três décadas de defesa de acusados em casos de direitos humanos, o advogado Gamal Eid nunca pensou “ver tempos são obscuros como estes” que o seu Egipto atravessa. Eid, que falou ao PÚBLICO por telefone na véspera da chegada de Abdul Fattah al-Sissi a Lisboa, lidera a Rede Árabe para a Informação sobre Direitos Humanos (ANHRI, na sigla em inglês), organização que promove a liberdade de expressão, opinião e crença no mundo árabe, que fundou em 2003. No ano seguinte, juntava-se ao Kefaya (Basta), o movimento que tentou mudar o regime de Hosni Mubarak; em Setembro, viu os seus bens congelados, depois de já ter sido impedido de viajar.

Sissi chega a Portugal num momento em que o Egipto atravessa uma crise económica duríssima sem que a repressão dê tréguas. Como é que vê a nova lei sobre o funcionamento das organizações não-governamentais, aprovada terça-feira pelo Parlamento?
Este regime declarou as organizações de direitos humanos um inimigo e isso reflecte-se negativamente na imagem do país e também tem um impacto na economia, afastando o investimento externo, desencorajando os investidores. As organizações de direitos humanos independentes e livres são atacadas permanentemente, têm os seus bens congelados, os seus representantes e funcionários estão banidos de viajar. Por oposição, as organizações corruptas e cúmplices são bem-vindas e encorajadas pelo Governo.

Já no sábado, três responsáveis do Sindicato dos Jornalistas, incluindo o seu presidente, foram condenados a dois anos de prisão.
As condenações dos responsáveis do Sindicato dos Jornalistas são um ataque sem precedentes contra a liberdade de imprensa e chegam como um culminar de medidas contra a liberdade de imprensa – canais por satélite encerrados, jornais confiscados, pelo menos 50 jornalistas detidos, um número muito significativo e sem precedentes na história moderna do Egipto. A perseguição ao presidente do Sindicato é ainda mais grave, não tem qualquer antecedente no país.

É o primeiro ataque ao chefe de um sindicato (os sindicatos têm estado a salvo dos regimes, são quase sagrados)?
Exactamente.

Porque é que a Tahrir nunca mais se encheu? Sissi matou o protesto com a repressão? Os egípcios estão traumatizados?
A primeira razão para a ausência de grandes protestos é que actualmente se a polícia ou os militares vêem qualquer movimento nas ruas respondem de forma muito violenta e atroz. Não tem de ser uma manifestação, estamos a falar de qualquer movimentação de pessoas. Por outro lado, o que tem acontecido é que muitos trabalhadores enfrentam julgamentos militares por organizarem greves ou protestos e como os media estão controlados pelo Estado há muito poucas notícias sobre as inúmeras greves que têm sido organizadas. Vemos muitos trabalhadores que enfrentam violações dos seus direitos constitucionais e isso está quase ausente da cobertura mediática, como acontece num regime de ditadura como era o de [Muammar] Kadhadi ou o de Saddam [Hussein, na Líbia e no Iraque].

Mas nunca mais houve multidões nas ruas.
Os protestos e as greves nunca pararam, desde que recomeçaram com Sissi continuam. Nós estamos sempre a incluí-los nos nossos relatórios e boletins. Mas os protestos massivos, a uma escala como a da Tahrir de 2011, apesar do movimento civil democrata no Egipto enfrentar o regime militar, e também o religioso, há medo de um cenário como o do Iraque e da Síria. Sissi, na sua retórica, defende que o Egipto não é a Síria nem o Iraque mas, ao mesmo tempo, conduz o país no mesmo caminho desses países.

Fala no movimento civil democrata. Ainda há espaço livre para a crítica e a dissidência?
O espaço está a encolher e a desaparecer. Mas os defensores dos direitos humanos e os opositores continuam o seu trabalho e pagam o preço disso, criticam o regime e pagam pelas suas críticas. Ou são ilegalmente presos e julgados ou têm de deixar o país e são forçados ao auto-exílio, o que tem acontecido com muitos.

Tem medo? Já pensou sair do Egipto ou desistir do seu trabalho?
Estou impedido de deixar o país. Às vezes tenho medo, mas prefiro viver com medo do que ser cúmplice.

São os piores anos de sempre?
Sim, é o pior de sempre. Em 28 anos de trabalho pelos direitos humanos nunca vi tempos tão obscuros e negros para o movimento como estes. E nunca imaginei que chegássemos a isto.

Pode piorar? Sissi orgulha-se de ter sido o primeiro líder a cumprimentar Donald Trump, o Presidente eleito já elogiou Sissi. Isto pode ter consequências negativas para o Egipto?
Sim, pode piorar e esperamos que piore depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e também com o crescimento dos movimentos de extrema-direita da Europa. Por outro lado, como já disse, Sissi é muito parecido com Kadhafi na sua repressão mas Kadhafi tinha petróleo e dinheiro. Nós temos a repressão de Kadhafi mas sem as soluções económicas que Kadhafi podia oferecer.

Sissi vai estar com o Presidente e o primeiro-ministro portugueses, vai ver empresários, visitar centros de investigação, como se fosse um líder normal. Está desapontado com a atitude internacional generalizada de aceitação?
A comunidade internacional não é só um bloco, compreendo que os países procurem os seus interesses e há países que o fazem comprometendo a democracia e os direitos humanos, outros não. Eu não confio nos governos, confio nos media independentes e nas organizações de direitos humanos independentes.

A delegação da Amnistia Internacional portuguesa foi recebida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros para falar sobre Sissi. Portugal é membro da União Europeia – a UE, em particular, devia ser mais dura nas suas críticas?
Não pedimos que os países cortem relações com o Egipto ou ponham fim a todos os contactos diplomáticos, sabemos que seriam pedidos realistas. O que pedimos, como o chefe do Parlamento alemão [Norbert Lammert, da CDU, de Angela Merkel], fez, ao recusar encontrar-se com Sissi, em apoio ao movimento democrático, são estes sinais. Mesmo que não possam apoiar a democracia, pelo menos não dêem o vosso apoio à ditadura. 

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