Uma família inteira morta com gás de cloro em Alepo

“Isto não é natural, nunca vimos nada assim. É o inferno”, diz Farida, médica na cidade. “Eles querem que a vida acabe em Alepo.” Mais de 250 mil pessoas podem morrer à fome em 20 dias.

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Hospital improvisado atacado pela última vez no sábado Abdalrhman Ismail/Reuters

As imagens estão para todos verem nas redes sociais. Uma família, quatro crianças, mortas, lábios roxos, espuma branca à volta das suas bocas, olhos abertos cercados por marcas negras. Há fotografias e há um vídeo – este foi visto por dois médicos que confirmam a causa da morte como asfixia por gás de cloro. A família Baytounji vivia no bairro de Sakhour do Leste da cidade síria de Alepo, atingido ao início da madrugada deste domingo por bombas-barril com gás de cloro.

“Os carniceiros do regime estão a largar bombas-barril com agentes venenosos em áreas residenciais. Isto aconteceu na área de Sakhour, mas outras zonas como Hanano e Ard al-Hamra, incluindo um hospital pediátrico, também foram atingidas com este gás. Ultrapassa-me como isto é possível…”, escreve na sua página de Facebook Rami Jarrah, fundador da ANA PRESS, organização criada para trabalhar em áreas sob repressão.

O cloro é um gás útil em diferentes campos mas a sua utilização como arma de guerra está proibida. Um inquérito da Organização para a Proibição das Armas Químicas da ONU concluiu, na sexta-feira, que as forças do Presidente Bashar al-Assad usaram gás de cloro em bombas-barril pelo menos em três ocasiões.

Os seis membros da família Baytounji não foram nem os primeiros nem os últimos mortos deste domingo no leste de Alepo, a parte da cidade que desde 2012 escapa ao controlo do regime de Assad e onde mais de 250 mil pessoas se encontram completamente cercadas.

Se isso é possível – aparentemente, é –, o leste de Alepo está a assistir nos últimos dias aos piores bombardeamentos de sempre. Hospitais, incluindo o último considerado funcional na área, casas e escolas têm sido alvo diário (este domingo decidiu-se que as escolas permanecerão fechadas) e as ruas estão desertas. Analistas consideram que Assad e os seus aliados russos decidiram dobrar de vez a cidade e que a querem reconquistar antes da tomada de posse do Presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, em Janeiro.

Segundo o Observatório Sírios dos Direitos Humanos, ONG com sede em Londres e uma rede de médicos e activistas no terreno, pelo menos 103 civis, incluindo 17 crianças, morreram debaixo de bombas desde terça-feira. “Não há bairro do Leste que escape”, diz o director da ONG, Rami Abdel Rahman. Com toda a probabilidade, o número será bem superior: só no sábado, segundo os Capacetes Brancos (organização de civis que resgata vítimas dos escombros), foram mortas 56 pessoas. Jarrah conta “mais de 300 civis mortos, mil feridos e dezenas de desaparecidos nos últimos cinco dias”, entre terça-feira e sábado.

Acabado de chegar a Damasco, Steffan de Mistura, o enviado da ONU para a Síria diz-se “extremamente entristecido e horrificado com a recente escalada de violência”, apelando a todas as partes “para cessarem os ataques indiscriminados contra civis e infra-estruturas civis”. Sábado, os Médicos Sem Fronteiras descreveram “um dia negro para o Leste de Alepo”.

Os quatro hospitais que sobravam foram “todos repetidamente atacados nos últimos dias”, diz David Nott, cirurgião com décadas de experiência em zonas de guerra que tem apoiado os médicos de Alepo. “Em todos os meus anos de experiência nunca vi imagens tão terríveis de feridos, pessoas deitadas no chão de salas de emergência de hospitais, mortos misturados com vivos”, descreveu em conversa com o jornal The Guardian.

Temos duas semanas

Farida, uma médica que ainda vive no Leste da que já foi a maior e mais importante cidade síria, diz que os últimos dias ultrapassaram o imaginável. “Não é natural, vimos tantos bombardeamentos mas nunca nada como isto. É o inferno. Queríamos tentar montar uma ala de maternidade algures porque a nossa foi destruída mas não conseguimos sair de casa”, descreveu ao mesmo diário britânico. “Eles querem que a vida acabe em Alepo.”

“Medicamentos, vacinas, tudo acabou. A este ritmo não nos vejo a continuar por mais de duas semanas. Não sei se ainda vai haver alguém vivo em Alepo daqui até lá”, diz. “Eles não nos conseguem derrotar no terreno, estão a tentar pelo ar. Bombardearam todos os hospitais e escolas, para que não haja vida e as pessoas desistam.” Farida não esconde o desespero: “Ninguém quer saber. Somos só árabes sunitas a viver em Alepo.”

Num artigo publicado há dias no New York Times, o chefe dos Capacetes Brancos, Raed Saleh, o presidente da Sociedade Médica Síria Americana, Ahmad Tarakji, e Laila Soudi, da mesma associação, escrevem que “mais de 250 mil pessoas podem morrer nos próximos 20 dias”.

São as tais duas semanas de Farid. “O Leste de Alepo vai ficar sem comida e medicamentos em 20 dias ou menos”, dizem, sublinhando que “do quarto de milhão de pessoas presas em Alepo, cem mil são crianças, incapazes de comer ou dormir por um medo incapacitante”. Com apenas 29 médicos “que sobram para tomar conta delas e das suas famílias, médicos que enfrentam a tarefa indiscritível de ter se escolher que criança salvar ou qual deixar morrer”, notam ainda os autores. “Temos todos medo. Trabalhamos sabendo que a próxima criança pode ser a nossa.”

 

 

 

 

 

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