Diz-me quanto tive no exame, digo-te que médico me deixam ser

Cerca de 2600 médicos fizeram nesta quinta-feira a polémica "prova Harrison", cuja nota determina se conseguem ou não entrar numa especialidade. À saída houve sorrisos, lágrimas e até brindes e confettis.

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Bruno Gonçalves, 24 anos, estudou 12 horas por dia nos últimos meses
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Terminou o dia H, que é como quem diz o dia do “exame Harrison” – como é conhecida a temida prova cuja nota final determina em que especialidade clínica vão poder entrar os jovens médicos. Cerca de 2600 candidatos fizeram nesta quinta-feira o exame em locais de todo o país.

O sol já se pôs quando na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, um dos locais seleccionados, começa a sair a primeira avalanche de candidatos que terminaram a prova. Cá fora há colegas, amigos e familiares. Verdadeiras claques. Há muitos sorrisos e abraços. Lágrimas e palavrões próprios do momento de descompressão, após o exame, que é assinalado com brindes de cerveja e até de tequila. É só hoje, garantem alguns dos presentes. Houve até quem trouxesse confettis e um cartaz para a “Nocas” (uma das que terá feito a prova) que dá os “parabéns” e que assinala o “the end”.

Foram 3000 páginas estudadas e, no caso de Bruno Gonçalves, 24 anos, revistas pelo menos quatro vezes, numa média diária de 12 horas de estudo nos últimos meses. Estudou sobretudo em bibliotecas, mas também assistiu a aulas de empresas especializadas em preparar os alunos para este exame, que tem como base um livro que recebeu o nome de um cardiologista que foi o seu primeiro editor. Bruno é aluno da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa e teve nesta quinta-feira 150 minutos e 100 perguntas de escolha múltipla para pôr à prova o que aprendeu nos seis anos do curso de Medicina.

Todos estes números vão dar lugar a um só: a nota final do polémico exame. Uma conta já conhecem à partida – por melhor que seja o desempenho, foram a exame 2600 candidatos e as vagas para formação são bem menos. No ano passado, pela primeira vez, ficaram cerca de 100 pessoas de fora e em Junho foram 158, isto sem contar com os que nem sequer se candidataram por perceberem, logo à partida, que não entrariam nas especialidades pretendidas.

Foi o caso de Davide Sá, 25 anos, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Teve 72% no Harrison do ano passado, mas veio repetir a prova pois sabe que com aquele valor não pode aspirar a uma vaga em anestesiologia. Isabel Pereira, de 26 anos, é também repetente, depois de ter chumbado na primeira tentativa. Estudou na República Checa, mas está determinada a regressar ao país e a contrariar a emigração médica. Acredita que é desta. Já Adelina Chambel espera ansiosamente pelo sobrinho Francisco Belém, que fez a prova pela primeira vez e que ainda não saiu. Tal como Isabel, estudou fora, em Barcelona, e quer voltar.

Só que desta vez podem ser ainda mais os médicos sem conseguir entrar na especialidade, o que tem feito com que sindicatos, Ordem dos Médicos e Associação Nacional de Estudantes de Medicina apelem à necessidade de restringir o acesso a Medicina, sob pena de se criar uma geração de “médicos indiferenciados”, que por não terem especialidade acabam a fazer apenas trabalhos como tarefeiros em urgências.

Uma forma “bizarra e frustrante”

Para já, resta esperar pela nota oficial, que só deve ser conhecida em Fevereiro de 2017. E só em Junho é que se fazem as candidaturas a uma especialidade. Entretanto, em Janeiro, estes médicos começam a trabalhar em várias unidades do país para fazer o chamado Ano Comum, uma oportunidade para circularem por várias áreas e perceberem o que querem mesmo escolher.

Bruno Gonçalves tem neurologia como primeira hipótese, mas sabe que é “quase um sonho”. É de Lisboa, mas quer ir para o Norte, onde considera que há melhor qualidade clínica e de gestão. Mas isso são planos que implicam que tudo corra bem — a começar pela prova que fez nesta quinta-feira. E, como descreve, o Harrison é uma forma de seriar os médicos “bizarra e frustrante”.

“Sejamos sinceros, o Harrison era um exame criado nos anos 1970 ou 1980 e que era suposto ser provisório, mas a verdade é que continuamos a estudar por este livro. O exame não reflecte de todo aquilo que nós vamos ser enquanto médicos, mas determina que médicos nos deixam ser. É um exame que se foca em pormenores, que não vão ser importantes na prática clínica, e que se foca sobretudo na capacidade de memorização e não no raciocínio clínico”, lamenta.

O médico ilustra o problema. Explica que a prova não pergunta perante determinados sintomas e exames que diagnóstico faz o candidato, como praticam no curso. “Pergunta, por exemplo, que percentagem de pessoas do sexo masculino são afectadas por uma determinada doença e as hipóteses são 10%, 12%, 15% ou 20%, que são valores próximos e obrigam apenas a decorar”.

Bruno acredita que para a semana já quase ninguém saiba muito do que decorou. Mas, por agora, o que quer mesmo é esquecer o exame.

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