Um quadro cortado ao meio por outro pintor, animais empalhados e muito mais

A Cidade Global reúne perto de 250 peças, algumas delas nunca antes mostradas. No centro da exposição estão duas pinturas que já foram uma só e que mostram a Lisboa altamente cosmopolita do século XVI.

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Annemarie Jordan Gschwend tem dedicado boa parte da sua investigação às cortes europeias, em particular a portuguesa e a espanhola LM MIGUEL MANSO

As duas peças centrais da exposição que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) reagendou para 26 de Janeiro de 2017 foram executadas por um pintor anónimo do Norte da Europa entre as décadas de 1570 e 1620 e mostram uma rua movimentada da Lisboa do Renascimento, cidade cosmopolita, centro de um império com territórios em África, na Ásia, na América. Uma capital que, em boa parte, desapareceu com o terramoto de 1755.

A descoberta destas duas obras que já foram uma só – foi o poeta e pintor pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti que as separou – numa mansão inglesa em 2009 desencadeou um projecto de investigação conduzido pelas historiadoras Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe, autoras do livro The Global City – On The Streets of Renaissance Lisbon (Paul Holberton Publishing). São elas também as comissárias da exposição que tem como "guião" este volume publicado no ano passado.

“É claro que não teremos em Lisboa todas as peças que reproduzimos no livro, mas é dele que sai a estrutura da exposição”, explica Jordan ao PÚBLICO numa breve conversa telefónica em que faz uma espécie de antevisão de A Cidade Global – Lisboa do Renascimento, escusando-se a fazer quaisquer comentários sobre o adiamento. O propósito do livro e da exposição é o mesmo – “fazer com que as pessoas voltem a caminhar pela Rua Nova dos Mercadores, vejam como Lisboa era uma cidade cheia de exotismo, com uma grande população de escravos negros e índios, com muito comércio, animais estranhos aos europeus e grande agitação, grande intensidade”.

Ao todo serão perto de 250 peças provenientes de 80 colecções públicas e privadas portuguesas e estrangeiras (entre elas há empréstimos do Museu do Prado, em Madrid, e do Museu Britânico, em Londres), distribuídas por sete núcleos expositivos que prometem evocar o ambiente dessa Lisboa do “cruzamento de culturas”, da “primeira globalização”, partindo de iconografia, de objectos do quotidiano e de outros “absolutamente extraordinários”.

“Esta Lisboa era especial”, diz Annemarie Jordan Gschwend, que tem vindo a dedicar boa parte da sua carreira ao estudo das cortes europeias, em particular a portuguesa e a espanhola. “Podiam comprar-se porcelanas Ming, dedais do Ceilão e sedas da Índia nas lojas do Rossio e da Rua Nova, onde havia 11 – 11! – livrarias. Através do inventário do recheio de uma casa rica – a de Simão de Melo [de Magalhães], capitão de Malaca – podemos ver como o mundo se encontrava à mesa em loiças e outros produtos, nalguns casos de luxo.”

Uma das salas da exposição vai centrar-se neste inventário para recriar o ambiente em que viveriam este capitão de Malaca e a sua família; outra, que muito agrada a esta comissária que fala português com sotaque do Brasil, vira-se para os “animais globais”, aqueles que foram dados a conhecer na Europa devido à Expansão: elefantes, macacos ou araras vão aparecer empalhados ou em documentos da Torre do Tombo e das bibliotecas Nacional e da Ajuda.

É precisamente neste núcleo de animais exóticos que aparece a obra emprestada pelo Prado – uma pintura de Jan Brueghel, o Jovem, representando o paraíso, em que podem ver-se araras ou papagaios, pássaros que eram trazidos pelos navegadores e marinheiros para fazer dinheiro, explica Jordan: “Esta obra do Prado é belíssima e mostra um tipo de peça que circulava muito nas cortes europeias por causa dos portugueses. Vamos mostrá-lo nesta espécie de câmara das maravilhas que tem muito a ver com outros objectos científicos e exemplares de naturalia que vão estar na exposição.”

O historiador de ciência Henrique Leitão ajudou a escolher algumas das peças para este núcleo e, ao PÚBLICO, destacou como “imperdível” um códice com iluminuras da autoria do matemático Francisco de Melo, oferecido ao rei D. Manuel em 1521 e hoje na colecção de uma pequena biblioteca do Norte da Alemanha.

Entre os documentos expostos, há ainda relatos de viagem de estrangeiros que visitaram Lisboa no século XVI e mapas vindos do Museu Britânico.

No que aos objectos diz respeito, a historiadora destaca um “raríssimo” dedal em ouro, cravejado de rubis e de safiras, que é o “exemplo perfeito de peça global”: terá sido feito no antigo Ceilão (actual Sri Lanka) de acordo com um modelo alemão (nas oficinas de Nuremberga estes dedais eram confeccionados em latão) e, depois, enviado para Portugal, onde seria comprado por membros da corte e da aristocracia. “É um pequeno dedal, como todos, mas conta uma história grande – dá a volta ao mundo.”

Annemarie Jordan Gschwend também está particularmente contente por poder mostrar um desenho recentemente descoberto por Pedro Pinto, investigador da Universidade Nova de Lisboa, na Biblioteca Nacional de Portugal. Representa um casa nobre do Rossio e vai ser exposto junto a uma pintura da praça já conhecida, que pertence ao antiquário Pedro Aguiar Branco.

Segundo esta historiadora, o adiamento da exposição não vai pôr em causa nenhum dos empréstimos que estão acordados há já muito tempo.

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