Miguel Veiga: as palavras, o mimo e a República

As demandas de Miguel Veiga não eram apenas direito, eram literatura. E os feitos em julgamento, não eram apenas retórica forense, eram drama grego, comedia dell’arte e tragédia shakespearana.

1. Miguel Veiga não cabe em palavras. Caberia decerto numa pintura, de traço garrido e bravo, capaz de captar o instante essencial que nele amiúde lampejava. Quiçá coubesse numa fotografia que, de uma só tirada, cativasse o olhar, o débito de fumo e o esgar de um vernáculo. Mas as palavras – essas doces meretrizes – não podem resumi-lo, não arriscam descrevê-lo. As palavras, que ele dominava como poucos, que ele fulminava na leitura compulsiva de poetas e de prosadores, as palavras, elas e essas, são despojos, despojos inanes, que de nada servem neste dia. Justamente porque inúteis, porque já indomáveis pela morte do seu mais sagaz domador, elas não minguam, elas sobejam. 

2. Miguel Veiga era um Amigo. Um amigo gratuito, que tudo fazia sem pedir e sem ter recebido: nele, por ele e com ele, não havia nem troca, nem tradição, nem transacção. Contratos são para advogados. Um amigo corajoso, que, qual mestre, escolhia os seus predilectos sem critérios sociais, culturais ou económicos e que desprezava, acima de tudo, todo o preconceito. E digo-o com vaidade – com a vaidade a que os amigos não devem atrever-se –, era ele literalmente quem os escolhia.

A sua amizade tinha foros de uma terna tirania: era ele quem elegia aqueles de que gostava e haveria de gostar intrepidamente até ao fim. Um amigo desassombrado, que dizia tudo sem baias nem limites, cara a cara, face a face, rosto a rosto. Nele, por ele e com ele, não havia equívocos, nem ambiguidades, nem zonas cinzentas. A amizade, ao contrário dos resgates, era incondicional. Um amigo desprendido, que nada quis nem queria para si. Nem cargos, nem honrarias, nem distinções.

Recusou-os vezes sem conta, no silêncio discreto da sua voz tonitruante e assertiva, sem margem nem paciência para rebuscados protocolos e jogos de sombras. Queria, é bem verdade, mimo. Mas o mimo – o mimo do Miguel – é de outro planeta: é o mimo dos amigos, o mimo da família, o mimo dos colegas, o mimo do cão. “Que quer?! Sou como os gatos, gosto que me façam festas!”. E nós lá íamos mimando.

Em face da grandeza da figura e do nome que espreitava por detrás dela, pode parecer desconcertante: mas mimar é bom e mimar Miguel Veiga era muito bom. Parece tudo assaz infantil, mas não se estranhe, que o grande e respeitado Miguel Veiga, apesar da aura de gigante das letras e da cidade, tinha muito de criança. Mimá-lo era, pois, bom, muito bom: é ainda esse mimo, esse precipitado de “conforto-consolo-aconchego-colo-e-prazer”, de que fruo e gozo ao digitar estes caracteres sobressalentes, estas teclas exorbitantes. 

3. Claro que o Miguel gigante da cidade e das letras – aquele Miguel que todos julgam que nada tinha de criança e pouco teria de adolescente – marcou indelevelmente as palavras e a cidade. Vale a pena começar pelas letras e, antes de todas, pelas letras jurídicas. Miguel Veiga não era um advogado: era o advogado. Do neurónio mais recôndito à mais visível das células dérmicas, Veiga era advogado. Ser advogado fazia parte da sua essência, do seu ser. E, consequentemente, fazia parte do seu estar. Veiga não era apenas advogado, Veiga estava advogado. Muitos são, mas poucos estão. Foi assim que se formou, foi assim que se fez, foi assim que se jurou, foi assim que se fidelizou, que foi e esteve fiel a si próprio.

Recusou muitas outras coisas, que lhe teriam granjeado umas tantas outras, visíveis e cintilantes: mas queria obstinadamente ser, estar, permanecer, ficar e continuar advogado. E a gramática, como a ética, com as suas prescrições – de que ser e estar são ainda permanecer, ficar, continuar – era coisa que ele respeitava e religiosamente observava e fazia observar. São lendárias as suas peças jurídicas em quase todos os domínios, mas especialmente no apetitoso recato e recanto do direito da família. Longas, longuíssimas, mas apetitosas, imagéticas, atractivas, verdadeiramente eróticas, tocadas pela graça de Vénus e pelo assédio de Apolo.

As demandas de Miguel Veiga não eram apenas direito, eram literatura. E os feitos em julgamento, não eram apenas retórica forense, eram drama grego, comedia dell’arte e tragédia shakespearana. Ler as suas petições, estudar as suas contestações, indagar das suas réplicas será maná para os juristas, mas é deleite e volúpia para os amantes da literatura. Assistir às suas instâncias e ouvir as suas alegações era música para a gente das leis, mas seria magia e encantamento para o anfiteatro, o fórum e ágora. As suas peças processuais – súmulas da grande literatura, em especial portuguesa, e da alta cultura europeia – merecem ser revisitadas. E podiam muito bem fundar, assim houvesse quem soubesse ministrá-lo, um curso de Law and Literature.

4. Falta o homem da polis, da cidade, na dupla acepção de República e de Porto. Miguel Veiga foi até hoje o cidadão mais livre e mais independente que conheci. A sua política era a liberdade, a defesa de uma sociedade em que mulheres e homens pudessem ser livres. E para ser livre, era necessário ter uma vida digna e decente, com um conteúdo económico e social, que fossem garante dessa liberdade. Aí, na liberdade real e factual, o seu pensamento casava com a igualdade e com a ideologia social-democrata a que prestava tributo. Não tinha medo de divergir, de dissentir, de estar sozinho num límpido campo de batalha ou numa trincheira ignota. Disse sempre, a alto e a bom som, o que pensava. E tudo dito, regressava ao mundo dos livros e dos mimos. A sua pátria era a cidade e a cidade era também o Porto, essa República de que era príncipe. Príncipe dos cânones, príncipe das letras, príncipe dos afagos, príncipe do verbo erudito, irónico, sarcástico, vernáculo e terno.

5. Havia, na origem de tudo, no único altar a que prestava culto, os lares. Os pais e, neles, a mãe. A Belicha. O filho, a neta. O cão. E o irmão de que sempre me falou: o Artur Santos Silva. E o Luís. E o Valdemar, o Adriano e o Nuno. E tutti quanti.

SIM e NÃO

SIM. Sollari Allegro. Médico exemplar, reinventou a sua paixão: Santo António e C. H. Porto. Com rigor, coragem e ambição, fez muito mais e melhor com menos. Eis a sua diferença, a diferença humana: soube ser o “doente-médico” e o “médico-doente”.

NÃO. Trump: encontro com Nigel Farrage. Aceitava-se que Trump começasse pelos britânicos (Theresa May, Boris Johnson ou embaixador). Mas dar essa honra a um populista xenófobo, sem qualquer representatividade, é um mau sinal. 

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