Curdistão Turco: é urgente agir

A permanência dos refugiados sírios no Curdistão Turco interessa às autoridades de Ankara. A curto prazo, eles colocam pressão económica sobre essas regiões.

Uma nova vaga de imensa opressão está a abater-se sobre o Curdistão Turco, face a um silêncio quase absoluto por parte da comunidade internacional. Dois co-presidentes da Câmara de Diyarbakir, a capital da região, foram brutalmente detidos e colocados na prisão. Este é o resultado, já esperado, da recente demissão de cerca de 100 mil autarcas por parte do Estado turco.

Estive no gabinete de Firat Anli, um desses co-presidentes da câmara, na qualidade de presidente de uma comissão internacional de averiguação de factos composta por deputados e activistas dos direitos humanos. Calmamente, com determinação e gentileza, apesar das grandes pressões a que é sujeito todos os dias, mostrou-nos, com a ajuda de mapas, a brutal e sistemática destruição do Centro histórico da cidade – o bairro de Sur – que o exército turco tem levado a cabo.

Onde antes estavam edifícios com centenas de anos, agora muitas vezes o que resta é uma pilha de entulho. Onde antes vivia uma população representativa da diversidade dos povos da Turquia, não sobrou ninguém. Vinte e três mil pessoas foram evacuadas e forçadas, sob ameaça, a assinar um documento assegurando que a destruição fora obra do PKK, permitindo assim ao Estado turco negar qualquer indemnização ou realojamento. Este documento permite também a sua substituição por populações próximas do AKP.    

A substituição da população, a alteração da composição étnica e religiosa de um território tem um nome: limpeza étnica. Consequentemente, a destruição dos símbolos da diversidade testemunha uma perigosa busca de pureza, característica do nacionalismo que actualmente se está a espalhar com permissividade no Sudeste da Turquia.

Feleknaz Uza tem dupla nacionalidade, alemã e turca. Antiga deputada do Parlamento Europeu, actualmente parlamentar do partido pró-curdo HDP[Partido Democrático dos Povos] no hemiciclo de Ancara, define-se a si própria como uma “curda iazidi”. Enquanto caminhava pelo campo de refugiados iazidis que fugiram de Sinjar e do genocídio, falou-me acerca do orgulho que tinha ao testemunhar esta amostra de solidariedade dos curdos da Turquia, apesar de eles próprios estarem sujeitos a uma opressão inflexível. O campo é efectivamente gerido apenas pelo município curdo de Diyarbakir, pois o Estado não tem intenções de suportar estes refugiados, chegando a negar-lhes o acesso aos hospitais, o que ameaça seriamente a saúde de alguns deles. Feleknaz Uza foi violentamente arrastada e presa pela polícia.

Ayla Akat é a presidente do Congresso das Mulheres Livres (KJA). Ex-deputada do HDP continua a sua luta, prestando particular atenção aos jovens, bem como à igualdade entre homens e mulheres. Há alguns dias, quando a noite já há muito caíra sobre Diyarbakir, com a tensa atmosfera do recolher obrigatório, reafirmou, com calma e determinação, a sua fé no feminismo e a importância desta luta, especialmente contra um poder que impõe não apenas a opressão sobre as minorias étnicas e religiosas, mas também o domínio dos homens sobre das mulheres. Foi presa e levada para a prisão, e dois dias depois, a polícia invadiu as instalações do KJA.

Numa sala apinhada do sindicato de professores Egitim-Sen (Sindicato dos Trabalhadores da Educação e Ciência), uma menina de sete anos lê um pequeno texto acerca do seu pai, no meio do silêncio destas famílias, preocupadas por um dos seus membros estar detido. Dos onze mil professores suspensos, dos quais quatro mil são de Diyarbakir, o pai da menina é um dos muitos que foram atirados para a prisão.

Todos os participantes na reunião expressaram, com uma dignidade que impõe respeito, a certeza de que iriam ser interrogados pela polícia devido aos seus testemunhos. Após inicialmente terem tentado cancelar o encontro, os polícias depois apresentaram-se, esperaram no exterior do edifício, com veículos militares e projectores, filmando e tirando fotografias de todas as pessoas que abandonavam o prédio.      

Rozerin tinha 16 anos quando foi assassinada pelo exército turco há apenas umas semanas. Uma adolescente igual a tantas outras, é uma das muitas vítimas civis nas mortes em Sur. Após esperarem dois meses, os seus pais tiveram que recorrer a uma greve de fome para conseguirem recuperar o cadáver da filha, tendo então enterrado Rozerin e iniciado um devastador período de luto.  

Que futuro existe para as crianças de Nusaybin? Nesta cidade situada perto da fronteira com a Síria, mães chorosas lamentam o assassínio dos seus filhos adolescentes. As crianças brincam num parque improvisado nesta cidade-fantasma, despida dos seus habitantes, completamente destruída e muito semelhante a Aleppo ou Grozny.

Existem muito poucas testemunhas da opressão que actualmente se abate sobre o Curdistão Turco. Tudo ise passa debaixo do silêncio, enquanto a censura faz o seu trabalho: todos os jornalistas turcos que estavam no local foram afastados, presos ou forçados a exilarem-se. Os seus órgãos de comunicação social fecharam.

Os jornalistas estrangeiros foram ameaçados, o que geralmente resultou na sua recusa em cobrirem esta região. Esta censura é também dirigida aos políticos: delegações do Parlamento Europeu e das Nações Unidas recentemente perceberam que a autorização exigida pelas autoridades turcas para poderem visitar a região não seria concedida. Um membro do Parlamento Europeu que devia ter ido na nossa missão cancelou a sua participação após ter visto que um seu colega tinha sido detido e interrogado pela polícia.      

Apesar da grande escala da violência que se está a registar face a uma total permissividade e ao sentimento de fatalidade que lhe está associado, existem meios para actuar e pôr um fim a toda esta opressão.    

A Europa pode colocar pressão nos seus planos políticos, económicos e até mesmo diplomáticos. Por muito medo e receio que os refugiados possam causar em alguns europeus, a sua utilização por parte de Erdogan para chantagear e confundir o desafio que eles representam para o poderio turco significa que a Europa está a fechar os olhos ao que está a acontecer nas suas fronteiras.    

A permanência dos refugiados sírios no Curdistão Turco interessa às autoridades de Ankara. A curto prazo, eles colocam pressão económica sobre essas regiões. A longo prazo, com acesso à cidadania e ao direito de voto, representarão uma mina eleitoral para o AKP, o que poderá permitir uma alteração no equilíbrio político da região. A coerção e a opressão da população não-turca na Turquia, através da alteração da composição da população de um determinado território, constitui uma antiga e fatal tradição do nacionalismo turco – o genocídio dos arménios em 1915 e deportações noutras alturas permitiram essas transformações. A alteração da composição da população do Curdistão através da instalação de sírios inscreve-se na mesma tradição de opressão, desta feita contra o movimento curdo.

  Com isto, Erdogan não poderá dar-se ao luxo de deixar que os refugiados passem em massa para a Europa, ou mesmo para o Ocidente do país. É uma aposta desonesta, que ele joga com mestria com os europeus, graças à rejeição que estes mostram face aos refugiados. O nacionalismo na Europa e o actual sistema de poder na Turquia – uma mistura de islamismo e nacionalismo – parecem ser aliados que se fortalecem mutuamente.

Se não agirmos agora de forma a colocar um travão no que parece ser a tentação totalitária da Turquia, não apenas o Curdistão continuará a ser oprimido, mas também a própria Turquia, onde um sistemático ataque está a ser levado a cabo contra tudo o que representa a lei, os direitos humanos e a democracia (intelectuais, jornalistas, ativistas, sindicatos, advogados, professores), irá resvalar para um sistema político que ameaça a região e os seus vizinhos, incluindo a União Europeia, que acabarão por sofrer as consequências negativas.

Perante as silenciosas ruínas de Nusaybin, uma amiga que enfrentou as batalhas da Tchetchénia e Grozny ensinou-me um provérbio tchetcheno, do qual já é demasiado tarde para tirar ilações para o seu país, mas ainda há tempo para o fazer em relação à Turquia: “Deve-se fechar a porta do cercado enquanto a vaca ainda está lá dentro, e não depois.”  

 

 

 

 

 

 

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