Pelo menos um dos bombistas suicidas de Bruxelas estava ligado ao tráfico de antiguidades

A arte e as antiguidades saqueadas de museus e sítios arqueológicos na Síria e no Iraque financiam o terrorismo. A Bélgica tem tido um papel central no tráfico, garante a Interpol na revista Paris Match.

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Khalid El Bakraoui, o bombista suicida de 27 anos que se fez explodir na estação de metro de Maalbeek, em Bruxelas Interpol/AFP

A investigação é da revista francesa Paris Match e liga o tráfico de antiguidades da Síria e do Iraque aos atentados de Bruxelas de 22 de Março de 2016 e aos de Paris de 13 de Novembro de 2015.

Peças provenientes de zonas da Síria controladas pelo Daesh terão passado pelas mãos de Khalid El Bakraoui, o bombista suicida de 27 anos que se fez explodir na estação de metro de Maalbeek, na capital belga, participando numa cadeia de atentados que resultou na morte de 32 pessoas e em mais de 250 feridos (o seu irmão Ibrahim, de 29 anos, atacou o aeroporto).

Embora dê a entender que é dele que se trata, a publicação semanal francesa não chega a referir o nome de El Bakraoui, mas a rádio belga RTBF fá-lo. Quem a Paris Match identifica como membro de uma rede de tráfico de antiguidades com origem em territórios sírios e iraquianos dominados pelos extremistas islâmicos é Salah Abdeslam, um dos jihadistas responsáveis pelos ataques de Paris de Novembro do ano passado, mais tarde capturado no bairro de Molenbeek, em Bruxelas.

As autoridades encarregadas da investigação não estão ainda em condições de dizer se este comércio ilícito financiou ou não directamente os atentados de Paris e de Bruxelas, mas em breve poderão estar.

Há muito que se sabe que uma das fontes de receita dos terroristas do Daesh está no tráfico de bens culturais saídos de museus e sítios arqueológicos em áreas que estão nas suas mãos, nalguns casos desde 2014, mas até aqui, que se saiba, não tinha sido encontrado nenhum elo directo a atentados em solo europeu.

Os dois irmãos libaneses

A investigação do semanário francês garante que muitas das peças saídas das zonas de conflito dominadas pelo Daesh estão a entrar na Europa precisamente através da Bélgica. No começo do ano os serviços alfandegários identificaram duas peças oriundas de uma escavação arqueológica síria que se destinavam a uma galeria suíça com uma sucursal em Nova Iorque, a Phoenix Ancient Art.

As peças que foram confiscadas provinham da antiga Mari, nos arredores da actual Tell Hariri, a 15 quilómetros da fronteira com o Iraque. Desde Junho de 2014 que os militantes do Estado Islâmico controlam este sítio arqueológico com cinco mil anos, uma das primeiras cidades da Mesopotâmia e, por isso, do mundo.

Jean-Claude Margueron, historiador francês e arqueólogo veterano que se especializou no estudo da Mesopotâmia – território entre os rios Tigre e Eufrates que hoje corresponde essencialmente à Síria e ao Iraque –, passou 25 anos a dirigir escavações em Mari. Quando esteve em Lisboa, em Maio do ano passado, disse ao PÚBLICO que, através de imagens de satélite, tinha comprovado que o Daesh arrasara algumas das estruturas da cidade, mas que não tinha conhecimento de artefactos dali saídos a circular. Ainda não vimos aparecer objectos no mercado, mas isso não é estranho porque nas escavações dos últimos anos não encontrámos praticamente artefactos. Mas estes sítios são uma tentação permanente. E com quatro anos de guerra... É uma catástrofe”, lamentou.

A destruição, lembrou Margueron, vai continuar em Mari e noutros sítios de valor patrimonial, em parte porque serve a propaganda dos extremistas e em parte porque há “coleccionadores sem escrúpulos” espalhados pelo mundo que não fazem perguntas sobre a origem das peças, tornando-se, assim, financiadores do terrorismo. Estes coleccionadores são alimentados por uma rede de intermediários e galeristas que, nalguns casos, são há muito seguidos pela polícia.

É o caso da galeria suíça que a Paris Match identifica, que pertence a dois irmãos libaneses, Ali e Hicham Aboutaam, que já no passado foram condenados por envolvimento no tráfico de antiguidades. Os Aboutaam negam agora qualquer ilícito relativo ao lote de peças – duas estelas votivas em alabastro datadas do terceiro milénio a.C. – provenientes de Mari.

O advogado da Phoenix Ancient Art, que pôs as peças à venda na edição deste ano da Brafa, a feira de antiguidades de Bruxelas (em Janeiro), garantiu à revista francesa que os seus clientes respeitaram todas as regras em vigor no que diz respeito à comercialização de bens culturais.

No âmbito deste trabalho sobre o tráfico de antiguidades e o financiamento do terrorismo, a publicação francesa esclarece ainda que teve acesso a um email enviado ao gabinete do primeiro-ministro belga pela coordenadora da Unidade de Bens Culturais da Interpol, Françoise Bortolotti, em que esta responsável mostra a sua “grande inquietação” com a decisão da polícia federal e do ministro do Interior, Jan Jambon, de acabar com o núcleo de investigação dedicado ao comércio ilegal de arte e de antiguidades, que deverá ser formalizada no final deste ano.

“A Bélgica, que é há já muito tempo um país de destino para as antiguidades e outros objectos provenientes do tráfico ou de escavações não autorizadas, vai certamente atrair ainda mais os traficantes, se não dispuser de um serviço especializado nestes assuntos”, disse Bortolotti, que teme vê-la transformada “numa placa giratória” para este tipo de actividade ilegal na Europa.

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