“A voz colectiva vai muito para lá de um país, é uma memória humana”

Quatro grupos de cantoras juntos pela primeira vez num mesmo palco, no momento em que as polifonias femininas são candidatas à Unesco. De Viva Voz é um projecto único, no Misty. Este sábado no Tivoli BBVA, em Lisboa, às 21h30.

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Cramol, grupo formado em Oeiras, na Biblioteca Operária Oeirense, em 1979 DR
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Segue-me à Capela, grupo formado em Aveiro, em 1999 DR
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Maria Monda, trio formado em Lisboa, em 2012 DR
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Sopa de Pedra, grupo formado no Porto, em 2012 DR
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Amélia Muge com Michales Loukovikas, seu parceiro musical no projecto Periplus RUI GAUDÊNCIO

São grupos que trabalham, cada qual a seu modo, o canto das mulheres. E vão reunir-se num mesmo palco, pela primeira vez, no Misty Fest, este sábado, no Tivoli BBVA, em Lisboa, pelas 21h30. Das históricas Cramol (grupo formado em Oeiras, na Biblioteca Operária, em 1979) até às mais recentes Maria Monda (trio criado em Lisboa, em 2012) ou Sopa de Pedra (Porto, 2012) e passando pelas Segue-me à Capela (Aveiro, 1999). O título do espectáculo é De Viva Voz e a iniciativa de as juntar foi da cantora e compositora Amélia Muge. “A ideia era trazer o tradicional para dentro do Misty Fest mas numa abordagem contemporânea”, diz ela. “Como dizia o Saramago, nós não temos só direitos, também temos deveres. E eu, como pessoa que desde há muito tempo está a tentar criar pontes, variadíssimas, não só em termos do meu projecto pessoal como com projectos de outros, pareceu-me de toda a pertinência criar este espaço.” Outra coisa que a incentivou: “O meu trabalho com o Periplus [projecto com o cantor e compositor grego Michales Loukovikas], até agora a experiência mais completa que tive com o trabalho vocal, deixou em mim uma sensibilidade muito especial para, a partir disto que é a poderosa força e importância da voz colectiva, criar este projecto.”

Realçando o papel e o apoio da Biblioteca Operária Oeirense e do grupo Cramol, sem os quais este projecto "não teria sido possível", Amélia diz ainda: “Isto não tem só a ver com uma questão artística, tem a ver também com as minhas origens. Nas minhas memórias de Moçambique [onde Amélia nasceu], em cada cem momentos onde ouvia as pessoas a cantar em colectivo tenho dez onde se ouvia só uma pessoa. Está muito presente em mim, a voz colectiva, e a importância dela. Não só a nível dos afectos, como das emoções ou da memória, que vai muito para lá de um país, é uma memória humana. Cada ser humano que chega, traz logo essa marca no seu próprio corpo!”

Uma força inexplicável

Os grupos acolheram muito bem o convite. Guida Pinheiro, das Segue-me à Capela, diz: “Com o Cramol já fizemos um espectáculo há uns anos atrás. Nós gostamos deste género de eventos, em que partilhamos o que cada grupo tem na sua forma de abordar a música da mulher e por isso é muito importante. É um desafio, até porque a Amélia fez-nos umas quantas músicas difíceis, e giras. Vai ser muito bom.” Margarida Antunes, do Cramol, sublinha que isto “é mais do que o somatório dos quatro grupos, e é isso que é importante”, e as Maria Monda confirmam: Tânia Cardoso diz que cantar em grupo com 40 mulheres (com agora sucederá) é “energeticamente muito forte”, Susana Quaresma, diz que o grupo tenta trazer para a sua música “a sonoridade dos arranjos polifónicos tradicionais, mesmo em composições originais” e Tânia Cardoso dá um exemplo do que farão no De Viva Voz: “Juntámos a Padeirinha a um excerto de um poema do último livro do Herberto Helder onde ele diz que fazer um poema é como fazer um pão.”

Teresa Campos, das Sopa de Pedra, lembra: “Só o facto de o corpo ser um instrumento tem um valor muito positivo. Sobretudo quando cantamos todas juntas, é uma força que não é muito explicável por palavras. É outra linguagem, outra forma de conversar sobre tradições mais antigas do que nós próprias.” Tira força ao canto tradicional, o facto de muitas actividades a ele ligadas terem desaparecido? “Acho que o torna antigo, mais do que lhe tirar força”, responde. Guida Pinheiro pensa que se este tipo de canto “fizesse parte do nosso dia-a-dia e da nossa cultura normal, é natural que tivéssemos muito mais gente a cantar e a conhecer estes cantares. Foi só na universidade que os conheci, até lá ouvia-os e não gostava.” Margarida Antunes, por sua vez, diz que este canto “existe em vários grupos, pelo país, mas está descontextualizado. A mecanização acaba por afastar esse cantar das funções para as quais foi criado. Mas está vivo.” E Sofia Portugal, das Maria Monda, acha que há um regresso a este canto. “Está a voltar este olhar para a tradição, mas de uma outra forma. E une pessoas de vários lugares.”

Candidatura à Unesco

Quanto ao De Viva Voz, o empenho é geral. Guida Pinheiro diz que “vai ser um espectáculo de grande qualidade musical” porque vão “abordar o canto da mulher e cantares de mulheres de várias formas: as Maria Monda abordam os cantautores de forma muito interessante; as Cramol são um grupo de mulheres muito poderosas, é sempre emocionante ouvi-las; e depois há as jovens da Sopa de Pedra, isto para já não falar de nós.” Teresa Campos acrescenta: “É uma tentativa de trazer várias visões do que foi e pode vir a ser a música tradicional. Mais do que um ramalhete de preferidos, é um grupo bem diverso e tem tanto de tradicional como de moderno.” Margarida Antunes, por sua vez diz que “é muito interessante haver ao mesmo tempo a candidatura do canto polifónico feminino em Portugal a património imaterial da Unesco.” Cramol, Sopa de Pedra e Segue-me à Capela assinaram o protocolo em 1 de Outubro, em S. Pedro do Sul, com o grupo Cantares de Manhouce (com Isabel Silvestre). “Já Lopes-Graça dizia que Portugal era um país riquíssimo neste tipo de cantos, se não o mais rico pelo menos um dos mais ricos da Europa. E isto não é conhecido, quase ninguém sabe.”

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