Macacos com lesão na medula voltam a andar com bypass neurológico

Em poucos dias, dois macacos com uma lesão parcial na espinal medula recuperaram o movimento da perna paralisada. É mais um passo importante em direcção a uma aplicação clínica dos interfaces neurológicos em humanos.

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Modelo em silicone de um cérebro de um macaco rhesus com o conjunto de eléctrodos usado na experiência Alain Herzog/EPFL

Uma equipa de cientistas usou um interface neurológico, sem fios e em tempo real, para restabelecer a comunicação entre o cérebro e a medula lesionada de dois macacos rhesus e conseguiu, em poucos dias, que os primatas voltassem a andar. É a primeira vez que uma neurotecnologia restaura a locomoção e foi em primatas, mas ainda há um caminho até chegarmos a uma aplicação nos humanos. Os resultados da experiência são publicados esta quinta-feira na revista científica Nature.

Para que uma perna ou um braço se mexa, o cérebro tem de enviar uma ordem até à medula que, por sua vez, descodifica os sinais e envia a informação para os músculos que executam o movimento. Quando há uma lesão na medula, o cérebro pode enviar a mensagem, mas ela é travada no local da lesão. Sem comunicação, o resultado é a paralisia. Neste caso, os macacos que foram usados na experiência tinham “apenas” uma lesão parcial que lhes paralisou uma das pernas. Sem a intervenção a que foram sujeitos, a recuperação deste tipo de lesões é possível mas costuma demorar pelo menos um mês e muitas sessões de fisioterapia.

Na imagem que acompanha o artigo na Nature, Grégoire Courtine, neurocientista do Instituto Federal Suíço de Tecnologia e um dos autores do trabalho, segura um modelo em silicone de um pequeno cérebro de um macaco rhesus com o que parece ser um minúsculo chip colado à superfície gelatinosa. Este sensor foi desenvolvido no projecto internacional BrainGate.

O conjunto de eléctrodos é uma das principais peças de um complexo sistema que restaurou a comunicação entre o cérebro e a medula espinal (onde também foi inserido um implante que faz a estimulação com impulsos eléctricos) nos dois macacos que, assim, recuperaram o movimento da marcha numa perna paralisada. Em apenas seis dias, um dos macacos já andava numa esteira e no chão e o outro fê-lo uns dias depois.

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Os dois dispositivos usados na experiência, um é inserido no cérebro e outro na medula (abaixo do local da lesão) Alain Herzog/EPFL

“Desenvolvemos um interface cérebro-medula que descodifica a intenção motora expressa por sinais cerebrais, contorna a lesão, e envia a informação para a medula para reproduzir os movimentos de marcha pretendidos” explica Grégoire Courtine num vídeo. Mas, para restabelecer a comunicação entre o cérebro e a medula, foi preciso aprender a linguagem que o cérebro usa para dar a ordem de marcha.

“Inserimos uma centena de eléctrodos numa pequena região do córtex [do tamanho de uma moeda] que controla o movimento da perna e enviámos a informação que registámos nos neurónios para um computador que decifrou [através de algoritmos] a intenção motora dos primatas baseando-se nos seus sinais. Ou seja, a extensão e flexão da perna”, explica.

Depois é simples: o computador envia esta informação para um estimulador implantado na medula (no local abaixo da lesão) que, por sua vez, transmite a mensagem para o sítio correcto e no timing certo, conseguindo reproduzir o movimento de extensão e flexão da perna.

“Fazer a ligação entre a descodificação do cérebro e a estimulação da medula – fazer com que esta comunicação exista – é algo completamente novo”, refere Jocelyne Bloch, neurocirurgiã no Hospital Universitário de Lausanne e também uma das autoras do artigo. Sem esconder o entusiasmo, a cientista nota: “Pela primeira vez, posso imaginar um doente paralisado a ser capaz de obedecer às ordens do cérebro através deste interface.” Grégoire Courtine é mais cauteloso: “É a primeira vez que uma neurotecnologia restaura a locomoção em primatas, mas ainda há muitos desafios pela frente e, por isso, teremos de esperar vários anos até que esta intervenção se transforme numa terapia para humanos.”

Num comentário na Nature, Andrew Jackson, do Instituto de Neurociência da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, reconhece a importância do “passo em frente” dado por esta equipa. Porém, também admite que ainda há alguns desafios decisivos que é preciso superar até conseguirmos que estes interfaces neurológicos consigam registar os sinais do cérebro de uma forma robusta e estável. Depois, nota ainda, este trabalho não mostra se esta intervenção seria capaz de restaurar a marcha em casos de lesões mais graves que paralisam as duas pernas, e que são os mais comuns. Por fim, diz Andrew Jackson, falta perceber se os macacos conseguiram manter o controlo do equilíbrio, da direcção e evitar obstáculos, que são essenciais para uma locomoção eficaz.

Apesar das limitações, este trabalho é mais um passo em frente numa área que recentemente tem revelado muitos e rápidos progressos. A ciência já mostrou bons resultados com sistemas que conseguiam traduzir a actividade cerebral em sinais motores para aparelhos, como braços robóticos, e até para membros superiores paralisados na sequência de uma lesão na medula.

Com todos estes avanços, e tendo em conta que os sensores usados nas experiências já estão aprovados para uso em humanos, Andrew Jackson conclui que não é insensato especular que as primeiras demonstrações clínicas de um interface entre o cérebro e a medula surjam antes do final desta década.

 

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