Em busca da agenda perdida das esquerdas

Com os acordos à esquerda praticamente cumpridos, e com a interrogação sobre eventuais segundos acordos no ar, o PÚBLICO recupera alguns temas que fizeram parte dos programas do Bloco de Esquerda e do PCP e que ainda não encontraram caminho nesta legislatura.

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Catarina e Jerónimo são os rostos dos acordos da esquerda LM MIGUEL MANSO

Há um ano, os partidos da esquerda assinavam, na mesma mesa, os acordos que haveriam de viabilizar o Governo PS no Parlamento, apesar de ter sido a coligação de direita a vencer nas urnas. Doze meses depois, o PÚBLICO foi revisitar os programas eleitorais do Bloco de Esquerda (BE) e do PCP para recuperar algumas ideias que foram perdendo gás. Não eram notas de rodapé. Onde estão agora?

Renegociação da dívida

Não se trata propriamente de um tema esquecido pelo PCP ou pelo Bloco, que continuam ambos a insistir na necessidade de renegociar a dívida. Existe, aliás, um grupo de trabalho para estudar a sustentabilidade da dívida externa, que junta socialistas, bloquistas e independentes, e que ainda não divulgou qualquer relatório. Mas o tema tanto não está esquecido que, no debate do Orçamento do Estado para 2017, o próprio ministro das Finanças se referiu a um eventual pedido de renegociação da taxa de juros sobre a dívida. Só que, depois disso, o ministro dos Negócios Estrangeiros corrigiu, no Parlamento, que o Governo "não tenciona renegociar a sua dívida", ao mesmo tempo que o presidente do Eurogrupo afastava essa discussão na segunda-feira, defendendo que Portugal “é capaz de gerir a sua própria dívida”. O próprio Centeno acabou por declarar, anteontem, em Bruxelas que "a reestruturação da dívida não está e não vai estar em cima da mesa".

O confronto irá continuar, porque tanto Bloco como PCP não parecem ter intenção de deitar a toalha ao chão. No manifesto bloquista, considera-se essencial iniciar o processo de reestruturação. Também o PCP defendia, no programa eleitoral, “a convocação de uma conferência internacional para a renegociação das dívidas dos países vítimas de processos de extorsão e chantagem dos ditos ‘mercados’ e que foram comprovadamente prejudicados com a sua associação à União Económica e Monetária.” Na prática, para o PCP, a renegociação da dívida passa pela “redução de pelo menos 50% do seu valor nominal” e, em conjugação com o alargamento dos prazos e a diminuição das taxas de juro, a redução de pelo menos 75% dos seus encargos anuais.

Saída da NATO

O PCP sempre defendeu que Portugal devia romper “com a conivência e subserviência face à União Europeia e à NATO”. Os comunistas entendem que “os conflitos mundiais intensificam-se no quadro de uma cada vez maior deriva militarista das principais potências da NATO” e, por isso, insistem na “dissolução da NATO” e na oposição a qualquer bloco “político-militar europeu”.

O Bloco afina pelo mesmo diapasão e propõe a “saída da NATO” e a “acção diplomática pela extinção deste e de todos os blocos militares”. No manifesto eleitoral, também se opõe à “constituição de uma força armada europeia” e quer lutar pelo “encerramento de todas as bases militares estrangeiras na Europa”. Apesar da assertividade de ambos os partidos relativamente a este tema, não tem havido propostas neste sentido no Parlamento. 

Europa e euro

A relação com a Europa sempre foi um ponto de afastamento entre o PS e os partidos à esquerda, com os socialistas a afirmarem-se muito mais europeístas. Analisando aquela que foi a mensagem do programa eleitoral do PCP e do manifesto do BE, facilmente se percebe, até pelo próprio léxico, que o pensamento destes dois partidos sobre aquela que deve ser a relação de Portugal com a Europa é bastante diferente da do PS. 

O vocabulário bloquista deixa pouca margem para dúvidas. No manifesto, têm mesmo um capítulo intitulado “Europa. Desobedecer à austeridade”. Para o BE, “uma esquerda comprometida com a desobediência à austeridade e com a desvinculação do Tratado Orçamental tem de estar mandatada e preparada para a restauração de todas as opções soberanas essenciais ao respeito pela democracia nacional”. Os bloquistas também consideram que “a arquitectura da moeda única criou uma autoridade sobre a política monetária e cambial que retira aos Estados os instrumentos mais importantes de acção económica”. E recusam, por isso, “mais sacrifícios em nome da moeda única”.

O PCP também insiste na questão da soberania e na “afirmação de um Portugal livre e soberano e de uma Europa de paz e cooperação, com uma nova política que rompa com a conivência e subserviência face às orientações da União Europeia (UE), com a renegociação da dívida e a libertação da submissão ao euro”. Para o PCP, a UE está “mergulhada numa profunda crise económica e social” e é “claro” que “o projecto da UE não beneficiou os povos da Europa”. O partido defende, aliás, a convocação de uma cimeira intergovernamental para a revisão dos tratados que tenha como objectivos, entre outros, “a imediata revogação do Tratado Orçamental e a revogação do Tratado de Lisboa”.

Também o BE propõe a realização de uma Conferência Europeia para a Reestruturação das Dívidas dos Países da Periferia do Euro e para o Fim do Tratado Orçamental (no mesmo manifesto, defendem também a convocação de um referendo sobre o Tratado Orçamental). 

Reforma aos 65 anos

Depois de o anterior Governo ter posto em prática um regime de actualização anual do limite da idade legal da reforma, que este ano se fixou nos 66,2 anos (mais um mês em 2017), o PCP inscreveu no seu programa eleitoral a “reposição da idade legal de reformas aos 65 anos”. Mas ainda nada apresentou sobre o assunto no Parlamento.

No seu manifesto eleitoral, o Bloco também defendia a necessidade de repor a idade legal da reforma aos 65 anos como regra geral” e de “garantir o acesso à reforma sem penalizações com 65 anos de idade ou 40 anos de descontos”.

IVA 

O Governo de António Costa cumpriu parcialmente aquilo que o PS defendia há quatro anos, criando um regime misto de IVA para a restauração - mantendo alguns itens a 23% e reduzindo outros para 13% - e manteve inalteradas as taxas aplicadas a outros bens, como a electricidade e o gás natural, que com o anterior Governo tinham subido dos 6% para a taxa máxima.

O PCP inscreveu no seu programa eleitoral a redução da taxa máxima do IVA de 23 para 21% e a “criação de um cabaz mais alargado de bens essenciais, taxados a 6%, incluindo a electricidade, o gás natural e o gás de botija”. E propôs também a introdução de uma taxa de 25% para bens e serviços de luxo – mas nunca avançou com qualquer proposta formal na Assembleia da República sobre estas matérias. Já o Bloco só imprimiu no seu manifesto eleitoral o “reescalonamento do IVA, com a redução à taxa mínima dos bens de primeira necessidade”, nos quais se incluem a luz e o gás.

Parcerias Público-Privadas

O PCP defendia a extinção de todas as PPP – Parcerias Público-Privadas de forma a poupar mil milhões de euros anuais – já o fizera com um diploma apresentado na anterior legislatura, que foi chumado pela maioria parlamentar de direita de então. No caso das rodoviárias, os investimentos passariam a ser feitos pelo Estado e seriam abolidas as portagens, propunham os comunistas em coligação com o PEV. Na saúde, o programa eleitoral especificava a reversão das PPP com os hospitais de Braga, Vila Franca de Xira, Loures, Cascais e da Linha Saúde 24, “devendo apenas ser pago o investimento efectuado depois de renegociados prazos, juros e garantias de obras e de equipamentos de acordo com a contratação pública”. Já o Bloco só fazia referência às PPP da saúde, defendendo a devolução ao domínio público da gestão dos hospitais. 

Taxas moderadoras

A par das reversões das PPP na saúde e da garantia de médico de família para todos, Bloco e PCP fizeram da eliminação das taxas moderadoras as suas bandeiras na saúde, inscrevendo tal pretensão nos programas eleitorais. Ainda não fizeram qualquer proposta nesse sentido na presente legislatura, apesar de, na anterior, terem insistido no assunto em todas as sessões legislativas.

Nacionalização da banca

É uma das bandeiras do PCP há longos anos e, com a sucessão de casos de bancos intervencionados, o BE também começa a defendê-la com algum afinco. Os comunistas insistiram no assunto em todas as sessões legislativas nos últimos anos, com diversas propostas sucessivamente chumbadas pela direita e pelo PS. Apesar de a ter voltado a incluir no programa eleitoral de 2015, desta vez o PCP ainda só se manifestou pela necessidade de nacionalizar o Novo Banco, com um projecto de resolução entregue em Fevereiro mas que ainda não foi discutido em plenário.

Os argumentos usados são os mesmos: necessidade de conter os “riscos sistémicos” dentro do sector e deste para a economia, o descalabro de diversos bancos provocado por gestões danosas e inabilidade da supervisão e regulação, o sucessivo recurso a meios públicos para resolver os problemas da banca. “O Estado, além da CGD, deve assumir participação na propriedade e responsabilidades de administração directa em bancos e outras instituições financeiras recapitalizados ou auxiliados com fundos públicos e adquirir progressivamente o controlo público da banca, por via de nacionalizações, aquisições, negociação adequada ou intervenção de emergência, justificada pela defesa do interesse público”, lê-se no programa do PCP.

O Bloco, ainda que partilhe do princípio da nacionalização da banca, foi mais comedido no seu manifesto eleitoral. "O primeiro passo para a nacionalização” deveria ser a “conversão em propriedade estatal dos benefícios ou créditos fiscais contabilizáveis como fundos próprios dos bancos”, afirma. Além disso, o controlo público deve “envolver uma reestruturação dos passivos bancários, hoje equivalentes a 311% do PIB, negociada com todos os credores da banca, por ordem de importância, e que proteja os depositantes”.

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