Ética e festivais

Como será possível considerar que o Lisbon & Estoril Film Festival é sério, com a devida ética de dar a ver filmes e propiciar a sua descoberta e a de autores ou a sua revisão e redescoberta?

Os festivais de cinema proliferam, é uma evidência, mas que não pode deixar de ser questionada.

Os festivais porquê, para quê e como? Há ainda alguns “apocalípticos” para quem a massificação desses eventos corrompe o prazer e a prática regular de “ir ao cinema”. É de facto estranho que de modo geral a frequência disso tenda a decrescer e no entanto haja a correria de se precipitar para n número de filmes em dez dias. É um dado perverso que não pode ser ignorado.

Mais latamente importa questionar: os festivais existem por causa de filmes – para lhes dar uma oportunidade e uma visibilidade – ou os filmes são o pretexto para servir os interesses de um festival? Essa é uma questão ética fulcral que não pode deixar de estar presente em geral e em casos particulares como o Lisbon & Estoril Film Festival, Leffest, que agora decorre.

O projecto de fazer um festival de cinema no Estoril, no casino, existia há décadas. Foi finalmente posto em prática por Paulo Branco, um produtor e distribuidor. Essa origem determinou uma matriz, a da “passadeira vermelha”, “o mais glamorouso festival português”, como dizem certos media.

Ao longo dos anos foi havendo algumas mutações de âmbito, mas uma decisiva quando o festival se alargou a Lisboa. Eis pois que estamos perante o caso de um festival organizada por uma produtora que é também distribuidora e tem uma exibidora associada, o que é caso inédito – Paulo Branco passa no “seu” festival os “seus” filmes de distribuidor e por vezes mesmo de produtor e fá-lo nas “suas” salas! Se isto não é conflito de interesses, então não sei o que o possa ser!

Mas há mais: embora receba menores subsídios do Instituto de Cinema e até da Egeac, a empresa de gestão cultural de Lisboa, o Leffest é particularmente apoiado pela entidade de turismo, com verbas provenientes da concessão de jogo ao casino. E, além disso, sendo muitíssimo menos importante no panorama das actividades culturais da capital do que os outros festivais, o Indie e o Doc (basta atentar numa enorme disparidade no número de espectadores), é aquele em que os autarcas marcam presença.

Eis pois reunido o caldo de um evento oficioso, turístico e de “passadeira vermelha”, que em simultâneo, mais ou menos contornadamente, mais ou menos assumidamente, o Leffest tenta desfazer multiplicando as práticas cinéfilas de retrospectivas (Branco não deixa de ser um cinéfilo, alguém que ama o cinema, e essa é uma inegável qualidade) e os cruzamentos com outras artes e com modos de pensamento partindo de práticas artísticas.

Só que essas facetas do festival se multiplicam de tal modo, sobretudo as retrospectivas, que a certa altura se torna impossível segui-las ou até tê-las minimamente em conta. No ano passado a Cinemateca organizou um ciclo do cineasta russo Marlen Khutsiev – oh escândalo, que já tinha havido no Leffest! Eu próprio, escrevendo sobre Hou Hsiao-Hsien, tinha ignorado uma retrospectiva no Leffest (o que objectivamente, embora de modo involuntário, foi uma omissão, reconheço, como é óbvio) – oh cabala, tentativa de denegação!

Este ano o Leffest anunciou com antecedência que iria dedicar retrospectivas a Godard e a Skolimowski, excelentes escolhas, diga-se. Depois da apresentação em Veneza do mais recente filme de Kusturica acrescentou-se aquele. Já seria muito, muitíssimo, demais. Mas vai-se a ver e não é tudo, longe disso: há homenagens/retrospectivas dedicadas a Teresa Villaverde, Pascal Bonitzer (este sendo um inevitável caso de estudo de como um crítico de primeira importância se reconverteu em cineasta anódino), Agustín Días Yanez e Daniel Rosenfeld, mais os filmes de base musical de Straub/Huillet (porquê?, são acaso pouco conhecidos?)!!!

Desculpem, mas como será possível considerar que o Leffest é sério, com a devida ética de dar a ver filmes e propiciar a sua descoberta e a de autores ou a sua revisão e redescoberta? Anuncia-se uma retrospectiva Godard com 60 filmes, longas e curtas, e logo há os gritinhos, os orgasmos cinéfilos dos fãs; é um feito, de facto, mas não perceberão esses fãs que 60 filmes em dez dias se torna uma impossibilidade de modos de ver e como tal um desperdício?

Já agora, também é de primeira importância conseguir mesmo realizar uma integral Skolimowski, um feito abafado pela histeria do godardismo e sobretudo pela própria lógica acumulativa do Leffest, que, para além de todas as questões de conflito de interesses, tem uma insanável contradição entre ser um evento cinéfilo ou um somatório de filmes para servir proveitos institucionais e/ou próprios – e essa é uma questão axial de seriedade e de ética, ou de falta delas.

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