Amadeo preparou-se para esta exposição como quem se prepara para a guerra

Amadeo de Souza-Cardoso volta ao porto 100 anos depois. Exposição recria outra que causou polémica e que até fez com que o pintor fosse agredido na rua. Nela, Amadeo revela-se moderno em todos os sentidos.

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A exposição original reuniu 114 obras, das quais Amadeo vendeu só uma (que pode agora ver-se no Porto) Nelson Garrido
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A exposição original reuniu 114 obras, das quais Amadeo vendeu só uma (que pode agora ver-se no Porto) Nelson Garrido

Há já muito tempo que Amadeo de Souza-Cardoso não é o artista desconhecido que foi durante décadas. Desde que, no início da década de 1980 a sua mulher, Lucie, confiou ao Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian um grande conjunto de obras deste que é um dos maiores artistas do primeiro modernismo português, o público tem tido acesso à sua obra, embora numa versão mais restrita e menos regular do que seria de desejar, se excluirmos o núcleo exposto em permanência no museu municipal de Amarante. 

Nos últimos dez anos, no entanto, este acesso condicionado tem vindo a ser contrariado por um programa editorial e de exposições, que começou em 2006 com Diálogo de Vanguardas (Gulbenkian), que o inseriu na arte internacional do seu tempo, e seguiu depois com dois volumes do catálogo raisonné (o de pintura e a fotobiografia, faltando ainda o desenho) e uma grande monográfica em Paris, cidade que é uma das referências geográficas e emocionais do artista (Grand Palais), já este ano.

Ainda que a organização nada tenha a ver com a Gulbenkian, ao contrário das iniciativas anteriores, a exposição que acaba de inaugurar no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, é mais uma paragem neste movimento de redescoberta de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), com a particularidade de evocar a primeira individual do artista, a única que  faz em vida.

Amadeo de Souza-Cardoso, Porto-Lisboa, 1916-2016 marca precisamente o centenário da monográfica que, com estrondo e polémica, apresentou de forma sistemática ao público nacional a obra de um artista que, sendo português, vivia e trabalhava em Paris há dez anos, tendo já mostrado o seu trabalho também na Alemanha, em Inglaterra e nos Estados Unidos.  

A exposição original, feita primeiro no Salão de Festas do Jardim Passos Manuel (hoje o Coliseu), epicentro cultural e de lazer da burguesia portuense (1 a 12 de Novembro de 1916), e depois na Liga Naval, então instalada no Palácio Calhariz-Palmela, uma das casas lisboetas em que era grande o peso dos monárquicos (de 4 a 18 de Dezembro, já contando com o prolongamento que se deveu à grande afluência de visitantes), lançou um verdadeiro debate sobre a arte em Portugal, em que se envolveram os mais importantes jornais, mas também intelectuais e artistas do grupo que gravitava em torno da Orpheu, a revista que os poetas Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro coordenaram e que, apesar da sua vida breve (saíram apenas dois números, ambos em 1915, e estava um terceiro em preparação), viria a marcar, escreve a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva no catálogo, “o início da cultura moderna em Portugal, na literatura e nas artes”.

Foi precisamente a pensar num programa capaz de celebrar os 100 anos desta revista, que Raquel Henrique da Silva, que divide o comissariado desta exposição com Marta Soares, autora de uma tese que analisa ao pormenor as ligações de Amadeo ao grupo da Orpheu, com Almada Negreiros à cabeça, começou a trabalhar nesta exposição em 2012/13. Objectivo – recriar, tão próximo quanto o possível, a original de 1916, tarefa difícil dada a escassez de informação em relação à sequência em que as pinturas, desenhos e aguarelas estariam expostas.

Para o fazer contam com cerca de 80 pinturas, desenhos e aguarelas e uma série de documentos composta por livros, cartas, o índice de obras e o álbum 12 Reproductions, pequeno livro com imagens de 12 pinturas que Amadeo publica pouco antes de mostrar os seus trabalhos no Jardim Passos Manuel e que funciona como um importante instrumento de divulgação do seu trabalho.

A exposição original reuniu 114 obras (113 em Lisboa), das quais Amadeo vendeu apenas uma (é possível vê-la agora no Porto). Dessas, conhece-se o paradeiro a 91, mas nem todos os proprietários aceitaram cedê-las. “A nossa ideia foi recriar, até certa medida, o ambiente da mostra de 16, evocando os chás dançantes e sobretudo o cinematógrafo do Passos Manuel”, diz ao PÚBLICO Marta Soares, enquanto caminha pela exposição, chamando a atenção para a grande proximidade entre as pinturas, hoje pouco usual. “As paredes estariam assim carregadas, chegando a haver sobreposições”, exemplifica ao apontar para um núcleo que reúne várias das “cabeças” de homem que o artista pintava e desenhava, de traços rudes, até de um certo grotesco. “Talvez estas tenham sido as obras que mais chocaram as pessoas que vieram à exposição e que saíram enfurecidas”, provavelmente as mesmas que, segundo a tradição oral, podem até ter chegado a cuspir numa pintura ou noutra (estas histórias ficaram mas não há documento algum que prove que tenham de facto acontecido). 

A reacção por vezes violenta, outras entusiasta, era algo que o próprio Amadeo antecipara, explica Henriques da Silva: “Amadeo faz esta exposição pronto para uma guerra e vai tê-la. Ele sabe que vai confrontar as pessoas com algo que a maioria nunca tinha visto e de que não iria gostar. Mas acha que vale a pena e fá-lo.”

Lembra a historiadora que o pintor chega até a ser agredido na rua - alguém lhe dá um soco depois de confirmar com Amadeo que é ele o autor das obras expostas no Passos Manuel.

Sem provincianismos

O contacto que tivera com o casal de artistas Sónia e Robert Delaunay, de quem era amigo e que como ele tinham ficado em Portugal por causa da Primeira Guerra, deu-lhe ânimo para montar esta primeira monográfica, acrescenta a historiadora, sublinhando o facto de ele incluir no lote de obras que selecciona trabalhos muito recentes, do próprio ano de 1916.

“Esta exposição mostra-nos que ele é um empreendedor, e não apenas um rapagão bonito, bem-posto, bem-falante, com talento e com dinheiro. É ele quem decide que obras expor, que participa na escolha dos lugares onde as vai mostrar e que concebe o alinhamento, que não é cronológico. Sabe, também, que tem de influenciar a imprensa, sabe com que jornalistas deve falar e recebe-os bem, é gentil. Ele é um gestor da sua obra, um gestor entusiasmado.”

Quando os seus projectos com os Delaunay para expor em Barcelona e Oslo falham, Amadeo volta-se para o Porto e para Lisboa, lembra Henriques da Silva, e nisso se vê que “não é um provinciano”. “É certo que quer regressar a Paris e expor nos Estados Unidos, mas Amadeo sabe que aqui pode fazer uma exposição tão boa como lá e não tem vergonha de assumir que em Manhufe está uma das suas centralidades. Tal como Pessoa, que também viveu numa grande cidade [Joanesburgo], o que Amadeo quer é ser ele próprio.”

Esse desejo de originalidade vê-se, lembra Marta Soares, numa das entrevistas que dá: “Eu por exemplo nem a mim mesmo me sigo […]. Tudo o que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito. A nossa arte não deve recuar, como não deve recuar a nossa imaginação sem limites”, diz Amadeo a um jovem jornalista do Jornal de Coimbra, que vê a exposição na Liga Naval e depois o acompanha num passeio pelo Chiado, falando do futurismo e das suas influências, das técnicas a que recorre e do seu método de trabalho. Neste artigo de João de Sousa Fonseca, que à data teria uns 17 anos, ficamos a saber, por exemplo, que o artista trabalhava em várias obras ao mesmo tempo e que estava a estudar maneiras de adaptar “a técnica maravilhosa dos antigos frades pintores à química moderna”.

O passeio pelo Chiado com o jovem repórter e as visitas guiadas que faz à exposição em que é, como diz Henriques da Silva, “comissário de si próprio”, são um reflexo do seu empenho em fazer chegar a obra ao público, que em Lisboa é mais elitista. “Ao Passos Manuel ia muita gente que nem sabia que a exposição lá estava simplesmente porque era ali o cinematógrafo”, explica Marta Soares, acrescentando que no Porto terá tido 25 a 30 mil visitantes. 

A imprensa que o elogia chama-lhe “distinto artista”, membro da “plêiade brilhante dos futuristas”, “valeroso representante” do abstraccionismo e “moço de talento e de rasgadas aspirações artísticas”. A que o ataca insere o seu trabalho no contexto internacional, fazendo referência aos que em França e na Alemanha se dedicam, como Amadeo, a “extravagâncias”: “De excentricidade em excentricidade, de bizarria em bizarria, chegou-se ao cúmulo da alucinação artística. Apareceram verdadeiras criações de manicómio, exemplares teratológicos, que reclamavam não já a análise serena dos críticos, mas a consideração atenta dos psiquiatras”, escreve-se no jornal O Primeiro de Janeiro, em Novembro de 1916. A Montanha chama mesmo à exposição do Passos Manuel “exibição obscena”, recomendando ao comissário de polícia que encerre Amadeo e o jornalista do monárquico O Dia que o elogia num “manicómio”.

Uma das críticas mais interessantes, embora negativa, reconhece-lhe algumas qualidades. É escrita n’A Luta, diário republicano, por Maria Arade, jornalista e enfermeira militar que viria a dirigir o Jornal da Mulher. Diz que os trabalhos de Amadeo são de “um colorido riquíssimo” e os “tons de uma transparência, de uma vida, de uma luminosidade como dificilmente se podem encontrar”. Isto pouco antes de escrever, com evidente ironia: “Entre os trabalhos expostos, figura uma cabeça, por sinal com expressão, tendo por nome O pobre louco. Se não é o retrato do autor… já é mania chamar aos outros o próprio nome!”

O próprio aspecto do pintor, na altura com 27 anos, não passa despercebido. “Alto, espadaúdo, cara rapada, vestindo com elegância, mais parece um sportsman do que um artista”, escreve O Dia, num artigo de João Moreira de Almeida que resulta de uma conversa e de onde sai a resposta de Amadeo recorrentemente citada: “Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos agora a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstraccionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola.”

Jornalistas e críticos implicam com os títulos, que consideram bizarros, incompreensíveis e a despropósito, dizem as comissárias, mas fazem uma cobertura que ajuda a fomentar o debate sobre a arte contemporânea da época, enquadrado pela Orpheu, em cujo terceiro número (o que não chegou a sair) Amadeo viria a colaborar. 

“O que o trabalho de investigação para esta exposição nos deixou foi muitas perguntas, mas também muitas perplexidades. Quanto mais se estuda Amadeo, mais percebemos que ele é um homem muito singular e determinado”, conclui Raquel Henriques da Silva. “Faz-nos pensar no que teria sido se não tivesse acabado tão cedo [morreu aos 30 anos].”

A exposição que está agora no Porto termina a 31 de Dezembro e segue depois para Lisboa, tal como a original, mas desta vez para o Museu do Chiado (12 de Janeiro a 26 de Fevereiro). 

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