Eles não crescem como os seus antepassados

O meu bisavô António deixou a aldeia de Sinde, concelho de Tábua, a cerca de meia centena de quilómetros de Coimbra, depois de terminar a 4.ª classe.

“Nós vamos caçar um urso, vamos caçar um urso grande”, leio aos meus filhos de 6 e 8 anos, antes de se deitarem. O livro de Michael Rosen e Helen Oxenbury, Vamos à caça do urso, começou por ser lido numa tradução livre quando o comprei em Londres, eram eles mais pequenos.

“Oh, não! Nós não podemos ir por cima, não podemos ir por baixo, temos de atravessar! Chape… Chape…”, contava, fazendo um ar horrorizado por estarmos a atravessar o rio e eles riam-se divertidos com as caras e os sons que eu fazia. No final, tínhamos de correr para não sermos apanhados pelo urso e ficávamos mesmo cansados, antes do beijo de boa noite e do desligar das luzes.

Aos 10 anos, o meu bisavô deixou a mãe na aldeia, viajou sozinho para Matosinhos, onde foi acolhido por uns tios e as suas noites eram passadas a fazer pão. 

Havia outra história que os meus filhos sabiam de cor. Adivinha o quanto eu gosto de ti, de Sam McBratney e Anita Jeram. “Daqui até à lua”, respondiam, e eu “daqui até à lua e de volta até cá abaixo”, lia. Mais tarde, introduzimos a fala do Buzz Lightyear “até ao infinito e mais além”.

Aos 18 anos, António ruma a Lisboa e, com o que poupara, compra uma venda de pão, ou seja, uma autorização para vender pão porta a porta, ainda o sol não despontou. Aos 22, está casado, arranja um sócio e monta a sua primeira padaria. Ele e a minha bisavó trabalham noite e dia para comprar a parte do sócio e estenderem o negócio. Têm várias padarias e depósitos de pão espalhadas pela cidade. Chegou a montar uma moagem. Antes da Segunda Guerra, com a 4.ª classe, foi administrador da Companhia Industrial de Portugal e Colónias, que hoje é a Nacional.

Com a idade com que o meu bisavô chegou a Lisboa, os meus filhos têm dúvidas sobre o que fazer no futuro, como muitos dos seus amigos que tiraram um gap year ou que trocaram de curso. “Eles andam confusos e isso reflecte-se no mau comportamento em sala de aula. São miúdos interessados, mas perguntam-se por que têm de estudar”, desabafava uma directora de turma do secundário. Eles mudaram, mas a escola não, centrada que está em preparar para um paradigma que já não existe.

O meu bisavô era grande, tinha um bigode farto e um ar confiante – mostra o retrato onde a grossa corrente de ouro do relógio atravessa o colete. Quando eu nasci ele já tinha cegado. “É muito chinesa, a menina?”, perguntava, para logo de seguida ter a certeza que era “muito bonita”. Morreu em 1974.

As histórias de António não comovem os meus filhos, como se não fossem um bom exemplo – “eram outros tempos”, justifica ele; “passamos demasiados anos na escola”, constata ela. “Os governantes insistem que faltam licenciados, mas mostram-nos que não é necessária uma licenciatura para chegar a altos cargos, é só preciso pertencer a uma juventude partidária”, diz ele, sarcástico. “Ou ser filhinho do papá, como a Amorim que também não terminou o curso”, acrescenta.

Eles não crescem como os seus antepassados. Eles não se imaginam a ter um emprego para a vida, isso já não existe para os seus pais. Eles querem viajar e trabalhar pelo mundo – mas como se faz isso quando se tem filhos?, perguntam, depois de delinear todo um plano a perseguir o Verão, para onde quer que ele vá. Homescholing, respondo-lhes, sossegando-os. Vão ser cidadãos do mundo os nossos netos, imagino sentindo já saudades dos seus olhos, bochechas e refegos.

Eles não têm pressa de crescer e quando passam por mim, em casa, apertam-me num abraço maior que eu e dizem-me “gosto de ti até à lua” e eu respondo “e eu até ao infinito e mais além”.

Sugerir correcção
Comentar