Mário Dionísio, um homem dividido

No ano em que se comemora o centenário do seu nascimento, o teórico mais importante do neo-realismo é revisitado na sua obra ecléctica que se reparte por vários domínios e teve, no seu contexto histórico, uma grande força de intervenção intelectual.

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No dia 16 de Julho, fez cem anos que nasceu Mário Dionísio (1916-1993). A efeméride foi evocada por um congresso que se realizou de 27 a 30 de Outubro em três lugares ligados à vida do escritor e ao estudo e à difusão da sua obra: a Faculdade de Letras de Lisboa, onde foi professor convidado, de 1978 a 1986 (tinha feito o curso de Filologia Românica, nos anos 30, na antiga Faculdade de Letras); o Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, e a Casa da Achada – Centro Mário Dionísio, inaugurada em 2009, onde se encontra, devidamente tratado, catalogado e aberto aos estudiosos, o espólio do escritor (mas, como é sabido, esta instituição fundada por um grupo de pessoas, entre as quais a filha de Mário Dionísio, a escritora Eduarda Dionísio, tem um programa cultural muito mais vasto e não se limita a ser um arquivo e um centro de difusão da obra da figura tutelar da Casa).

Tinha já sido publicada, há alguns meses, na colecção Plural da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a Poesia Completa de Mário Dionísio, um volume com mais de 500 páginas, introduzido por um texto de Jorge Silva Melo em tom de evocação muito pessoal. Dos poemas de 1936-1938 (mas só publicados em livro em 1941, com o título singelo de Poemas) até Terceira Idade, de 1982: a obra poética de Mário Dionísio desenvolveu-se ao longo deste arco temporal e fechou com um livro que se deixa ler como o balanço de uma vida, um olhar sobre si (e sobre o mundo; este duplo movimento caracterizou sempre a sua poesia, mesmo quando foram mais forte os vínculos com um ideário poético hostil ao “subjectivismo”) que tem um carácter de rememoração. E é justo que se digar “olhar” porque há neste último livro uma apoteose da visão.

Foi um congresso plural, para poder abarcar as várias áreas em que se reparte a obra de Mário Dionísio, cuja singularidade reside precisamente no modo como exerceu a sua actividade e teve uma intervenção pública em vários campos: foi poeta, ficcionista (autor de vários volumes de contos e de um romance), crítico, ensaísta, pintor, professor. Se a sua actividade de professor surge nesta lista ao mesmo nível da obra artístico-literária e teórico-ensaística, foi porque a exerceu não de maneira funcionária mas como uma vocação a que respondeu com extremo empenho: “Ensinar como simples ganha-pão é repugnante”, escreveu ele na sua Autobiografia, de 1987. O seu magistério no Liceu Camões (onde foi colega de um outro celebrado professor dessa casa, Vergílio Ferreira, cujo centenário também se comemorou este ano), ao longo de duas décadas, tornou-se um tópico de evocação recorrente, por parte de alguns dos seus ex-alunos que se tornaram figuras públicas da artes, das letras e da política, e explica parte da sua fama e do seu prestígio. Luís Miguel Cintra foi um desses ex-alunos (mas também Jorge Silva Melo, Eduardo Prado Coelho e muitos outros) e coube-lhe fazer, numa das sessões do Congresso, um longo e emocionado testemunho – enquanto aluno para quem Mário Dionísio foi “o Professor” da sua vida, primeiro, e, depois, como amigo de casa. Foi, de resto, na condição de professor com uma vasta intervenção na área da teoria pedagógica que presidiu à Comissão de Estudos da Reforma Educativa, logo após o 25 de Abril. Algo hoje tão esquecido como outro cargo público que aceitou exercer: o de director de programas da RTP.

Polémicas e batalhas

De Mário Dionísio diz-se, sem contestação, que foi o mais relevante teórico do neo-realismo. O que significou habitar um território de polémicas e batalhas. Esse papel, começou ele a desempenhá-lo por volta de 1937, escrevendo crítica e ensaios em publicações da época. Em 1934, com 18 anos, iniciara-se nas andanças crítico-literárias num semanário chamado Gleba, que dirigiu e paginou. É preciso dizer que em 1937 ainda mal estava em germe o movimento neo-realista, pelo que devemos concluir que Mário Dionísio não foi um teórico com a pretensão de formar escola e construir programa. De resto, tal como nunca concordou com a designação de neo-realismo, proposta por Joaquim Namorado, também não entendeu esse movimento como uma “escola” nem como a versão portuguesa do realismo socialista. É, pois, muito significativo que a mais importante contribuição teórica para a elaboração de uma estética neo-realista tenha vindo de alguém que, desde o início, parece acentuar discordâncias ou, pelo menos, introduzir complexidade onde as coisas, mediadas por uma ideologia, tendiam a apresentar-se com uma esquemática simplicidade. Esta discordância de tempos e de modos irá acentuar-se e explica o lugar central que Mário Dionísio teve na chamada “polémica interna do neo-realismo”.

Mas não foi apenas como teórico que Mário Dionísio entrou no território do neo-realismo. A sua primeira recolha de poemas em livro dá-se em 1941, com um volume que integrou a colecção que foi um marco fundamental do movimento, o Novo Cancioneiro. Não sendo uma poesia de exaltação e de tom enfático, também não se pode dizer que destoava com evidência do ideário neo-realista. Talvez mais “desviados” (desde logo por representarem o mundo da pequena burguesia urbana, que era aquele que Mário Dionísio conhecia) sejam os contos reunidos em O Dia Cinzento e Outros Contos, de 1944, cuja capa trazia um desenho que só muitos anos depois se soube que era da autoria do próprio. Em 1944, ele era ainda – e foi-o por mais algumas décadas – um pintor clandestino.

A polémica interna do neo-realismo, iniciada em 1952, teve como palco principal a revista Vértice. No princípio, ela envolve, numa disputa teórica, António José Saraiva e José João Cochofel. Quem conheceu António José Saraiva já tardiamente terá certamente dificuldade em reconhecer a feroz ortodoxia ideológica com que interveio já em 1954, numa altura em que a polémica se reacende, com um texto intitulado A Ponte Abstracta. Os visados eram os escritores e os artistas que, mergulhados no “formalismo” e reclamando do público uma atitude de “veneração da arte”, ficam isolados no seu “elitismo”, as pontes que criam para a recepção da sua obra são, afinal “pontes abstractas”, que não vão dar a lado nenhum. Formalismo, elitismo, o absoluto da arte: eis os grandes “pecados” de que os mais acérrimos defensores de uma arte empenhada ou de tendência querem salvar o neo-realismo. Nesta polémica, Mário Dionísio teve uma intervenção importante com um texto do início de 1954, O Sonho e as Mãos. Este título serviu-lhe para contestar toda a ideia de relação reflexa e imediata entre o objecto artístico ou literário e o seu exterior, o mundo social. E para defender que não há nenhuma arte revolucionária se não estiver comprometida em primeiro lugar com a sua condição de arte.

A vexata quaestio é brandida com vigor num longo ensaio, também publicado na revista Vértice, assinado por António Vale (que só muitos anos mais tarde se saberá que é um pseudónimo de Álvaro Cunhal, então na prisão) e intitulado Cinco Notas Sobre Forma e Conteúdo, visando, sem o citar, o texto de Mário Dionísio. A dicotomia forma/conteúdo, eis um cavalo de batalha com uma longa história e de que resultarão fracturas internas no seio do neo-realismo. Evidentemente, neste campo de batalha, Álvaro Cunhal estava do lado do “conteúdo”. Mário Dionísio, esse, aplicou-se, em vão, a defender que era uma falsa oposição, que não há conteúdo sem uma forma, e que a arte não pode ser definida pelo assunto, nem por uma intenção, nem como aplicação de uma temática ideológica. Esta contestação da dicotomia forma/conteúdo (na origem de uma frequente e fácil acusação de “formalismo”) é muito importante nesta polémica: porque nela reside uma matéria densa e controversa com que o neo-realismo sempre se defrontou. A singular posição, no interior da literatura neo-realista, de Carlos de Oliveira, um dos grandes amigos de Mário Dionísio, que lhe prefaciou Uma Casa na Duna, é também muito determinada por esta questão.

A Paleta e o Mundo, um grande ensaio sobre pintura que começou a ser escrito em 1952 (foi primeiro publicado em fascículos e depois reunido em cinco volumes), é também uma elaboração mais sólida de todas estas questões. Essa é a obra maior do ensaísta Mário Dionísio. Mas uma conferência que ele proferiu em 1957 na Sociedade Nacional de Belas-Artes, Conflito e Unidade da Arte Contemporânea, recentemente reeditada pela Casa da Achada), será talvez o texto mais eloquente (desde logo no título) da tensão que percorre a posição estético-ideológica da sua obra (em todas as suas facetas): a tensão ente o conflito e a unidade. Num contexto político e intelectual bastante desfavorável, num momento em que eram poucas e gastas as ferramentas conceptuais que tinha ao seu dispor, Mário Dionísio percebeu quais eram as grandes tensões da arte e da literatura do seu tempo. 

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