O Porto em extinção visto das tabernas

Começou com as adegas, as tabernas e as casas de pasto. Acabou a falar de toda a cidade. De tradição e modernidade, opções e inevitabilidades, reabilitação urbana e suas consequências. Uma viagem nostálgica pela história do Porto com o novo livro do historiador Helder Pacheco.

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Manuel Roberto

A hora de almoço ainda vem longe, mas no Alfredo Portista os relógios não impõem a agenda. Bebe-se vinho, cerveja, uma “pinga” qualquer. Pede-se “um mastigo” para acompanhar. A adega está composta. Numa mesa ao fundo da sala, duas turistas japonesas observam a parafernália da decoração como quem vê um monumento. Uma dezena de clientes discute futebol — e o ânimo não deixa dúvidas: o fim-de-semana correu bem ao FC Porto. “Hoje é um bom dia para vir aqui”, comenta sorridente Helder Pacheco, ferrenho adepto azul e branco. À mesa com o historiador portuense, a conversa é sobre tascos, a propósito do seu novo livro lançado esta semana. Mas, ao falar sobre eles, já o assunto é o Porto — e “a morte de uma certa cidade perante um mundo em mudança”. Uma inquietação por aquelas bandas do centro histórico, morada do Alfredo Portista, onde os habitantes vivem a braços com a “invasão” turística.

— Oh senhor professor, queria pedir-lhe um favor. Fale lá com quem manda nisto, que eles ouvem-no. O turismo na cidade é preciso, mas tudo tem um limite. Já não se pode viver aqui!

Helder Pacheco está habituado ao modo “cunha”, ainda que no seu percurso não tenha cargos de decisor. José Lisboa, 66 anos, reformado, conhece o “professor” há muito tempo. Dos livros, jornais, televisão. Nos últimos anos, anda aflito com a cidade à la carte para os turistas. Vive na Rua do Comércio, em pleno coração do Porto, e jura a pés juntos que mesmo já tendo passado por várias cidades da Europa nunca viu fenómeno assim. “Os turistas são bem-vindos, mas que diacho: não se esqueçam de nós.”

A narrativa não saiu dos trilhos ao fugir para a “batalha” entre moradores e visitantes da urbe, entre a tradição e a modernidade. 

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Casa Louro Nelson Garrido

Mas vamos recuar. Falávamos de tascos.

Helder Pacheco tinha feito um inventário em 1997. Em pesquisas para um livro sobre o Santo António, patrono do comércio tradicional, contou na cidade uma centena de tabernas. Eram ainda muitas — e ao mesmo tempo poucas, pensando nas mil contabilizadas em 1920. Quando há cerca de quatro anos integrou o Grupo dos Amigos das Adegas e Tascos do Porto (GAATP), apercebeu-se de que algo tinha mudado. “A confrontação entre o que vi em 97 e nessa altura alertou-me para o problema”, contou ao P3.

Estava encontrado o ponto de partida para o livro Adegas, Tabernas e Casas de Pasto – Os bons velhos lugares do convívio do Povo (Edições Afrontamento). Helder Pacheco atirou-se à pesquisa a pensar numa obra sobre esses lugares onde o Porto é tão Porto: as adegas e as tabernas, por definição “locais de venda de vinho a copo”, e as casas de pasto, onde ao vinho se junta o petisco. Não pretendia burilar um estudo etnográfico, nem tão pouco um roteiro gastronómico — ainda que pelas quase 400 páginas do livro estejam também as moelas, a farinheira e as pataniscas, a orelheira, pratinhos de presunto e  punhetas de bacalhau. Queria estudar e homenagear essa tradição popular e operária, as “pátrias da conversa” (como lhes chama o historiador Christopher Lasch), “sítios do lazer por excelência”, representantes da “cultura dos pobres” (por sinal “bem mais rica do que muita da erudita que para aí anda”), como diz Helder Pacheco.

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Adega S. Martinho Nelson Garrido

Queria falar de solidariedade e dos vizinhos feitos família em convívios de taberna, dos mealheiros e das “caixas de 20 amigos”, onde se recorria com juros baixos em caso de aflição. Recordar os grupos excursionistas, que se quotizavam para sair uma vez por ano até Guimarães, Viana do Castelo, no máximo Lisboa.

O passado ficou lá atrás

A história contada por Helder Pacheco não é, ainda assim, a da morte dos tascos, ou pelo menos ele não gosta de a nomear dessa forma: “Prefiro chamar-lhe o último ciclo de um mundo em extinção”. Esse mundo do século XIX, sobrevivente no século XX, ainda a respirar, com dificuldades, em 2016, readaptando-se à época ASAE. “As tabernas estão a acabar. Foram abandonadas, emparedadas, esquecidas. Deram lugar a prédios e hotéis.”

Das genuínas, restam “não mais de uma dúzia” em toda a cidade. O Alfredo Portista, a Adega Floresta, a Adega Mesquita, a Adega do Olho, a Flor do Palácio, a Casa do Louro, O Golfinho, A Badalhoca, a Tasca da Dona Cremilde. Pouco mais. “A mais bonita e tradicional”, a Adega S. Martinho, fechou a 12 de Agosto, estava já Helder Pacheco a dar os últimos retoques no seu livro. Teresinha, Maria Teresa Teixeira, sucumbiu à força do imobiliário. Na sua adega, onde por 46 anos se fizeram contas em escudos no mármore do balcão, vai nascer um hotel. A notícia valeu ainda uma página, in perpetuum, no fim da obra do historiador: três parágrafos e algumas imagens, em jeito de homenagem, testemunhas de um tempo que passa rápido de mais.

Teve sabor agridoce, o acontecimento. Por um lado certifica a reabilitação urbana a dar cartas na cidade, por outro arrasa-lhe o que de mais genuíno ela tem. “O Porto é hoje um espaço contraditório entre forças muitas vezes antagónicas”, analisa Pacheco. E esse foi, a dada altura da escrita do seu livro, o seu “drama”. Para quem quer ser “intelectualmente honesto”, este jogo é realmente de “difícil equilíbrio”.

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Adega Rio Douro Nelson Garrido

Qual dos caminhos escolher? A tradição, onde é o povo quem mais ordena, mas sem sustentabilidade económica? Ou a modernidade, cheia de turistas e de bolsos cheios, mas sem a população lá dentro? Helder Pacheco aponta para uma terceira via, uma balança onde caibam os dois mundos — mas isso, diz, ainda ninguém descobriu como fazer.

Do livro sobre tabernas, desenhou-se então uma reflexão sobre dois séculos de uma cidade. E nessa análise não entram só as mudanças naturais do tempo. Se a desindustrialização era inevitável, se a rejeição desses espaços pelo povo, à medida que melhorava de vida, era previsível, o mesmo não se pode dizer da “deliberada terciarização do centro do Porto”, aponta. “A partir dos anos 60, disse-se que o centro era para os serviços, para a banca, para os escritórios. E vai daí os cinemas acabaram, o comércio acabou, os tascos acabaram, as pessoas foram-se embora.” A realidade é-lhe próxima. Alguns dos seus melhores amigos, “portuenses de gema”, mudaram-se para os arredores, tal como fizeram 100 mil pessoas nos últimos 30 anos.

Foi essa a “grande tragédia da cidade” e “não tinha de ter sido assim”, meneia a cabeça, irritado com os “sucessivos erros políticos”. Que ninguém confunda o seu discurso com saudosismo. O mundo mudou — e ainda bem que mudou. “Neste sítio onde estamos agora o passado significava desemprego, pobreza, degradação absoluta. Não tenho qualquer saudade disso.” O que lhe vai no coração é outra coisa: “Nostalgia por uma certa cidade humanizada, densa, popular e cheia de identidade.”

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Badalhoca Nelson Garrido

Incómodo com as mudanças

Helder Pacheco nunca fez das tabernas segunda casa — até porque é um abstémio convicto. Mas desde miúdo que se sentiu atraído por elas. Na Rua do Correio (agora Conde de Vizela), onde nasceu, não se cansava de espreitar um tasco que por lá havia. O pai, cliente da Adega do Galo, onde comprava fogaças, levava-o muitas vezes com ele. Mais tarde, “parava intelectualmente” em várias. Gostava de “observar”. Ao restante comércio tradicional faz questão de se manter fiel: só faz compras na Baixa e recusa-se a entrar em grandes superfícies. 

Ao terminar a empreitada deste livro, sentiu-se leve: “Acabou por ser um testemunho espiritual do meu incómodo com certas mudanças”, diz em jeito de balanço. Agora basta desse “pesadelo” por uns tempos. Na próxima obra, já em andamento, caberá apenas “a cidade bonita”, pintada com textos “nostálgicos e poéticos”

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Adega S. Martinho Nelson Garrido

Entretanto, a pensar na preservação da tradição das tabernas, o historiador tem sonhado com o GAATP um espaço museológico onde se recriasse a S. Martinho. Têm todo o espólio guardado — a porta vai e vem, cadeiras, balcão, mealheiro — e aguardam apenas bons ventos políticos. O futuro, esse, é um manto de nevoeiro. Subordinado às opções dos descendentes dos donos dos tascos. À vontade de outros jovens pegarem em projectos do género. Até quando resistirão as adegas, tabernas e casas de pasto genuínas da cidade? “Honestamente, não sei”, responde. “Como diria o Bob Dylan: ‘The answer, my friend, is blowin’ in the wind’.”   

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