Cate Le Bon: e do absurdo fez-se luz

Crab Days é o álbum de uma música que descobriu na imaginação infantil uma resposta para o tempos absurdos. É a obra de uma galesa que cria música única, onde se conjugam o sinistro, a luz reconfortante, o nonsense e o puro prazer na criação. Ao vivo este sábado no Jameson Urban Routes.

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Como sabemos, não há uma segunda oportunidade para criar uma primeira impressão. A galesa Cate Le Bon, aparentemente, sabe-o bem. Crab Days, o seu álbum mais recente, arranca com stomp minimal de bateria e jogo de guitarras de uns Velvet Underground a sabotarem alegremente, com tensão malévola, uma canção pop  – o sinistro motivo de piano que se repetirá a intervalos regulares está lá para isso. Começa com Cate Le Bon a cantar as “famous first words” de “Crab Days”: “It doesn’t pay to sing your songs”. Dois versos depois, estará a explicar-nos (mais ou menos) o que se passa. Anote-se: “The bottom line is in the how”.

Cate Le Bon explicar-nos-á que Crab Days é um álbum sobre o absurdo. “Sobre o absurdo gerar medo e de o medo, por sua vez, acentuar o absurdo”. Ainda agora começou Crab Days, prossigamos, e já a voz e a música de Cate Le Bon nos impelem a continuar, a segui-la neste encontro entre subterrâneos pós-punk, pop delicodoce e gentileza de cantautora folk (devidamente sabotadas), a par de lampejos da deliciosa excentricidade de Kevin Ayers. Segui-la só para ver onde nos conduz e garantimos que vale a pena cada segundo da viagem.

Esta é música que surpreende a cada volta inesperada, são canções que criam o seu próprio universo. São canções, simplesmente – grandes canções, registe-se. Num universo alternativo, Crab Days é álbum do ano e Cate Le Bon a rainha da pop. Não habitamos esse universo, mas Cate Le Bon merece que a descubramos mais e mais. O álbum, o quarto de uma carreira iniciada em 2007, já o temos. Agora será também tempo de ver como esta música existe em palco. A oportunidade chega com o festival Jameson Urban Routes, no Musicbox, em Lisboa. Cate Le Bon é um dos destaques de sábado, 29 de Outubro. A partir das 16h30 tocam Lonnie Holley e Primeira Dama. Às 21h chegarão os Mendrugo de Josephine Foster e Victor Herrero, chegará depois Cate Le Bon e, às 0h30, será tempo para Mykki Blanco e DJ Earl.

Cate Le Bon nasceu há 33 anos em Penboyr, no País de Gales. Teve a sorte de, quando despertava para a música, ter por perto quem lhe mostrasse um caminho a seguir. “Tinha 13 anos quando cena brit pop estava a explodir. Apareciam novas bandas todos os dias, mas não só soavam todas ao mesmo, como parecia que eram todas formadas pelas mesmas pessoas”. Cate Le Bon decidiu, então, olhar noutra direcção. Não teve que procurar muito. “Os Gorky’s Zygotic Mynci e os Super Furry Animals [duas das mais distintas bandas galesas da década de 1990] eram estas bandas criativas e atraentes que cantavam sobre política e cantavam sobre nonsense e não soavam a nada mais que estivesse a acontecer na altura”, recorda. Anos mais tarde, lançaria a sua carreira precisamente enquanto suporte de uma digressão a solo de Gruff Rhys, vocalista dos Super Furry Animals (e teve membros dos Gorky’s a tocar no álbum de estreia, Me Oh My). Para ela, o surrealismo psicadélico dos Gorky’s Zygotic Mynci e a centrifugadora pop dos Super Furry Animals foram “como uma espécie de punk”: “Estavam a fazer o que quer que lhes apetecesse e isso influenciou toda a cena galesa, não necessariamente no som, mas na atitude. ‘Não há regras, podemos fazer o que quisermos’”.

O castelo perfeito

Cate Le Bon editou o seu primeiro EP, cantado em galês, em 2008 (Edrych yn Llygaid Ceffyl Benthyg). Estreou-se em álbum no ano seguinte, com Me Oh My. Em 2012 foi editado Cyrk e em 2013 Mug Museum. Choveram comparações a Nico, pela voz grave e pela frieza com que soltava os versos das canções (ela acha que a comparação é “preguiçosa”, mas por esta altura já desistiu de a contestar). Elogiou-se a forma como conjugava uma luminosidade difusa e reconfortante com um subtexto radicalmente diferente – o primeiro álbum teve como título de trabalho Pet Deaths, por exemplo. Crab Days é um álbum diferente dos que o antecederam. Mantém o olhar único de Cate Le Bon (anotem o verso: “love is not love, when it’s a coat hanger”), mas é fruto de um recomeço.

Mudou-se para Los Angeles em 2013 (já gravou “Mug Museum” na cidade americana) e entretanto conheceu Tim Presley, dos White Fence. Juntos gravaram, sob o nome DRINKS, o álbum Hermits on Holiday. “Foi um disco marcado por um abandono total à música. Foi daí que nasceu Crab Days. Sinto-me muito afortunada por ter encontrado o Tim. Percebi que adoro fazer música e que fazê-la não é uma obrigação profissional. Fazer álbuns para as pessoas que participam neles, sem pensar em quaisquer outras expectativas tornou-se a principal motivação naquilo que quero atingir com a minha música”.

Crab Days tem origem num dos melhores lugares do mundo, na imaginação de uma criança – neste caso, a sobrinha de Le Bon. Certo dia 1 de Abril, confessou que achava o dia das mentiras estúpido e proclamou outro em seu lugar, o Dia do Caranguejo. Cate Le Bon, naturalmente, achou a ideia brilhante no seu nonsense. E adequadíssima. “Mais que um álbum sobre um país ou um lugar, mais que um álbum sobre o mundo, é um álbum sobre tempos estranhos e absurdos. Por alguma razão o Trump pode ser presidente. É ridículo, mas está a acontecer. O medo e a ganância conduzem-nos a sítios muito estranhos e assustadores”. A sua resposta não é um álbum político, entenda-se. É mais profundo que isso.

Produzido por Noah Georgeson (Devendra Banhart, Joanna Newsom, Vetiver), foi gravado nos arredores de São Francisco, num “estranho estúdio rodeado por árvores e montanhas, com o oceano a mostrar-se do outro lado da janela”, recorda. “Senti-o como uma espaço fora deste mundo. Foi como que uma extensão das visões que perseguia enquanto compunha as canções” – entram os vibrafones e os metais assombrados, o piano de realejo a cair sobre guitarras, aquela voz que nos diz, naquele canto que é também performance cénica, “I was born on the wrong day” ou “I want to be a motion picture film”.

Junte-se esse ambiente à nova ambição de Cate Le Bon enquanto compositora, e teremos perante nós Crab Days. Diz ela: “Quando éramos crianças entregávamo-nos completamente a qualquer tarefa que nos parecesse importante. Podia ser construir castelos com caixas, por exemplo. Ninguém estava a ver-te, ninguém estava a pressionar-te, não havia quaisquer influências exteriores para além da determinação em cumprir a tarefa em mãos. Para mim é importante cortar com tudo o que é exterior ao processo e tentar ser novamente essa criança”.

Num estúdio em São Francisco encravado entre o oceano e a montanha, Cate Le Bon dedicou-se a construir o castelo mais perfeito. Quando terminou, olhou bem para ele. Bizarro. Nem sinais do castelo. Cate tinha acabado de criar um belíssimo caranguejo. Pode ser estranho e intrigante, mas garantimos que quando se depararem com ele o vão achar irresistível. 

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