Brunhilde Pomsel: secretária de Goebbels, mulher sem (falsos) remorsos

A German Life traz-nos em discurso directo, ao Doclisboa, uma mulher que esteve muito perto do centro do poder nazi.

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Há dezenas e dezenas de documentários sobre as vítimas do nacional-socialismo. Dezenas e dezenas sobre os seus carrascos. Só os “seguidores” (mitläufer, em alemão) – os que não foram formalmente acusados de crimes de guerra mas que deles não podem ser isentados por completo – parecem receber pouca atenção. Christian Krönes e os outros três realizadores de A German Life (Florian Weigensamer, Roland Schrotthofer, Olaf S. Müller) quiseram contrariar este “esquecimento” e filmaram um longo depoimento de uma secretária e estenógrafa que trabalhou para o ministro da Propaganda de Hitler. Ninguém ainda vivo esteve tão próximo de Joseph Goebbels como Brunhilde Pomsel, a mulher que encontramos neste documentário austríaco que a filma de perto, a preto e branco, em toda a sua amargura e determinação, em toda a sua lucidez.

Brunhilde Pomsel sabe o que esperam dela – sabe-o há muito – mas não cede. Querem que se arrependa? Que finja sentir remorsos? Que diga que tudo aquilo era desagradável e penoso? Ela não o fará. Não está disposta a fazer concessões. Nem mesmo aos 103 anos (hoje tem 105), quando diz esperar que os seus dias acabem depressa. O que viveu está no passado, perturba-a, leva-a perguntar como foi possível, como pôde um homem tão educado e elegante enfeitiçar toda uma nação, fazê-la acreditar que a “guerra total” e a vitória alemã que se impunha como o único desfecho possível justificavam qualquer meio?

“Nunca ninguém acredita em nós. Todos acham que sabíamos tudo. Nós não sabíamos de nada. Tudo foi mantido em segredo – e resultou”, diz, olhando a câmara, rosto muito enrugado mas longe de parecer a idade que tem. Gesticula muito, pára de falar por vezes como se estivesse a recordar algo que não quer dar a ver e esconde a cara nas mãos. “Naquele tempo não pensava nas coisas. Eu simplesmente pertencia ali.”

Pomsel começou a colaborar com o regime como secretária no departamento de notícias da rádio do Reich em 1933 e só nove anos mais tarde foi transferida para o escritório de Goebbels, onde ficou até descer ao bunker de Hitler, até ao fim da guerra. Chegara à rádio depois de trabalhar para um nazi que estava a escrever as suas memórias, isto quando era ainda funcionária de Hugo Goldberg, um advogado e agente de seguros judeu.

“Não trabalhei com Goebbels, trabalhei para ele”, reforça. Tudo o que fazia no seu escritório era escrever à máquina, diz, embora admita mais à frente que, a dada altura, tinha por tarefa “maquilhar” os números das baixas nas tropas do Eixo e exagerar os que diziam respeito às mulheres alemãs violadas pelo Exército russo. “Tornei-me algo frívola e superficial”, acrescenta, reconhecendo que gostava do ambiente sofisticado do ministério e que sempre achou que ministro e a sua mulher, Magda, de quem chegou a receber um fato de presente, eram muito gentis.

Brunhilde diz sem preocupações que aplaudiu Hitler em Janeiro de 1933, quando chegou ao poder, que a Alemanha o via como um “homem novo” capaz de a resgatar e que a Berlim de 1936 era uma cidade vibrante, cosmopolita, à espera dos Jogos Olímpicos. “Houve uma grande mudança, mas nós não a víamos como tal”, admite, para reconhecer mais à frente que a inércia generalizada se devia, em parte, à percepção de que resistir teria consequências catastróficas: “O idealismo da juventude poderia facilmente levar-nos por um caminho em que podíamos acabar com o pescoço partido.”

Para ela, os meados da década de 1930 foram “tempos maravilhosos”, com tropas em parada e actividades recreativas do partido por toda a parte. “Tudo o que é bonito também tem manchas, assim como o que é mais horrível também tem algo de luminoso. Nada é a preto e branco. Há sempre cinzento em tudo.”

Foi esta honestidade que tornou a sua história credível, diz ao Ípsilon o realizador Christian Krönes, numa entrevista por email. A equipa do filme cruzou-se com Pomsel por acaso, quando andava à procura de uma amante de Goebbels, e achou de imediato que a sua história valia a pena. “Ela não tenta fazer com que as coisas pareçam melhores do que eram nem mostra quaisquer falsos remorsos, o que acontece muitas vezes com as pessoas que viveram esse período”, acrescenta, lembrando que no final da montagem, quando lhe mostraram o documentário, ela comentou: “Ver este filme no fim da minha vida é como olhar para um espelho e reconhecer todas as coisas que fiz mal.”

Krönes e o resto da equipa acreditam que Brunhilde Pomsel não apoiava os nazis, mas que, estando tão próxima do poder, ela se tornou uma “companheira de viagem”. “Ela era apolítica e isso, só por si, é uma forte acusação”, diz, defendendo que o facto de ela se ter concentrado apenas na sua carreira, recusando-se a interpretar o que se passava à sua volta, é revelador.

O que o documentário pretende a partir do seu exemplo, explica, é levar o público a responder, com honestidade, a perguntas como: "Que princípios teria eu sacrificado para ser promovido e ganhar mais?", "Quão eficaz teria sido a minha bússola moral naquele contexto?" E aí, como noutros aspectos, as ligações à actualidade são fáceis: “Aprendemos tão pouco com o nosso passado recente… Por isso quisemos mostrar com este filme que a guerra e a tirania não nascem do nada, que um clima social pode oscilar muito depressa, que o mal nem sempre é imediatamente reconhecível e que todos temos de pôr em causa as nossas posições morais constantemente.”

O também produtor Christian Krönes e os seus colegas quiseram ainda falar dos tais “seguidores”, dos milhões de pessoas que por falta de coragem ou por oportunismo se tornaram cúmplices de uma ideologia que desconheciam ou em que não acreditavam totalmente: “Quisemos contar a história dos aproveitadores, dos hipócritas e de todos os que desviaram o olhar. Por causa disto milhões de pessoas, os que prestaram atenção apenas ao seu próprio destino, tornaram-se os verdadeiros mensageiros de uma ditadura cruel.”

Sou uma dos cobardes

Brunhilde teve uma infância dura, marcada por um pai autoritário que recorria a punições físicas. A sua educação, conta a certa altura deste documentário de 113 minutos montado a partir de 30 horas de conversa, ensinou-a a mentir, a enganar, a pôr as culpas nos outros para evitar ser castigada. Incutiu nela, também, um “sentido de dever”, de subordinação absoluta às regras, algo que diz explicar a relação que manteve com o regime.

Goebbels, o homem que estava sempre “ligeiramente bronzeado”, que “parecia arranjar as unhas todos os dias” (é Pomsel quem o conta) e dizia frases como “se começares a mentir, continua a mentir”, teria provavelmente gostado de ouvir falar da sua relação com a verdade.

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“A única coisa que se pode dizer sobre Goebbels é que era um actor extraordinário. Ninguém melhor do que ele poderia personificar a transformação de um indivíduo civilizado e sério noutro conflituoso e delirante”, diz a antiga secretária que depois do fim da guerra passou cinco anos numa prisão soviética, comparando a imagem que tinha do patrão no escritório, um homem requintado e correcto, com a que saiu do célebre discurso à nação que o ministro da Propaganda fez no Palácio dos Desportos de Berlim, a 18 de Fevereiro de 1943, depois da derrota dos nazis na Batalha de Estalinegrado, considerada um dos grandes pontos de viragem na guerra (foi a partir daí que o Exército Vermelho travou o avanço nazi em território soviético e começou a empurrar as tropas do Reich até entrar, triunfante, em Berlim): “Não acreditariam que era a mesma pessoa. […] Parecia um anão raivoso.”

É impossível fugir à perspectiva que Pomsel tem dos acontecimentos, defende Krönes, explicando que, na opinião dela, tudo o que fez foi ter uma vida normal. “É inevitável – chega a uma altura em que temos de dizer a nós mesmos que, provavelmente, acabaríamos por fazer o que ela fez. E embora possamos esperar ter agido de outra maneira, nunca saberemos o que realmente faríamos.” Mas ela sabe: “As pessoas que hoje dizem que teriam feito mais por aqueles pobres judeus perseguidos… Acredito que sejam sinceras ao dizê-lo, mas também elas não teriam feito nada.”

Brunhilde Pomsel não tem qualquer problema em assumir a sua passividade: “Não sou do tipo de pessoa que resiste. Sou uma dos cobardes.” Krönes elogia-lhe a frontalidade, mas se lhe perguntarmos se a considera culpada (e culpada de quê), responde: “Ela podia não conhecer a dimensão e todos os detalhes do Holocausto, mas, como milhões de outros, ela não fez nada, ela não reagiu até ser tarde de mais, e isso torna-a culpada.”

Foi, em parte, por causa da forma directa como se expõe, que a equipa decidiu filmá-la em grande plano e a preto e branco. Os quatro realizadores quiseram dar ao documentário o mesmo efeito intemporal que tem a sua própria história. A ausência de cor concentra a atenção de quem vê no que é dito, transporta-nos imediatamente para o passado e estabelece uma relação directa com os excertos de filmes de arquivo – uns propagandísticos, outros noticiosos; uns alemães, outros americanos; quase todos impressionantes e alguns deles nunca antes divulgados – que vão interrompendo o depoimento desta testemunha. “O preto e branco surge como uma espécie de metáfora capaz de criar um contraste semelhante às contradições da própria natureza de Brunhilde Pomsel.”

Ela é a alemã que trabalhava para os nazis, que tinha uma amiga judia de cabelos vermelhos chamada Eva e que hoje acredita firmemente que o mal existe. “Não sei bem como dizer isto… Deus não existe, mas o Diabo de certeza que sim”, diz quase no fim de A German Life.  Depois Brunhilde Pomsel hesita, engole em seco, parece esforçar-se para não chorar e continua: “No fim de tudo, não há justiça. A justiça não existe de todo.”

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