Um continente antropofágico, dentro e fora do palco

Novas peças de Tamara Cubas, Guillermo Calderón e Felipe Hirsch mostram como passado e presente continuam a canibalizar-se na América Latina.

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Mateluna, de Guillermo Calderón

“O passado é um animal grotesco”, lia-se no título da peça (roubado a uma canção dos Of Montreal) com que o dramaturgo e encenador argentino Mariano Pensotti se estreou há um ano e meio em Portugal. Talvez seja uma verdade universal, mas parece uma verdade feita à medida da América Latina e do seu exuberante e reiterado historial de violência, pilhagem e extermínio. Do México ao Chile, esse passado continua a alimentar o presente, como algumas das peças que passarão por Lisboa ao longo de 2017 mostrarão. Desde logo, uma peça do mesmo Pensotti, que regressa ao Maria Matos já a 21 e 22 de Janeiro: Arde Brilhante nos Bosques da Noite recupera uma figura mítica da esquerda, a revolucionária Alexandra Kollontai, para ir à procura das ressonâncias da Revolução Russa na América Latina de hoje. Mas também Mateluna, do chileno Guillermo Calderón (15 a 17 de Fevereiro, Maria Matos), irá ao passado resgatar uma história colectiva de violência, a partir do destino individual de um resistente à ditadura recentemente condenado a 17 anos de prisão por assalto a um banco.

Será o prolongamento de uma narrativa – a do teatro chileno como reacção ao trauma fundador do Pinochetismo – que António Pinto Ribeiro já tinha começado a contar enquanto coordenador do programa Próximo Futuro. Mas há outros pontos em que a programação de Lisboa 2017 retoma descobertas feitas nesse ciclo da Gulbenkian: a coreógrafa uruguaia Tamara Cubas, que já tinha vindo mostrar a sua visão do corpo colonizado em Puto Gallo Conquistador, regressa para fazer a estreia mundial de Trilogia Autofágica no São Luiz, de 15 a 24 de Setembro. Passado e presente voltam a comer-se vivos, literalmente: Cubas canibaliza o cânone da dança contemporânea brasileira, apropriando-se de três das peças mais influentes da última década (Vestígios, de Marta Soares, Matadouro, de Marcelo Evelin, e Pororoca, de Lia Rodrigues) para as refazer, desfazendo-as. À margem dessa estreia, o próprio Evelin estará em Lisboa pouco depois (29 e 30 de Setembro, Maria Matos) para apresentar Dança Doente, resultado da sua imersão no butoh. E do Brasil virá ainda outro grande acontecimento, o díptico A Tragédia Latino-Americana / A Comédia Latino-Americana (São Luiz, 1 a 5 de Março), em que Felipe Hirsch disseca um continente bipolar, “tão novo e já tão destruído”, a partir de alguns dos seus autores mais negros e mais malditos. Até ao fim do ano, também os argentinos Daniel Veronese (Vigília de Noche, 13 e 14 de Maio, São Luiz) e Sergio Boris (Viejo, Solo Y Puto, 28 a 30 de Novembro, Maria Matos) e a chilena Trinidad González (Pájaro, 25 e 26 de Maio, Maria Matos), entre outros, nos darão mais notícias do teatro latino-americano – mas haverá casos em que elas virão cá de dentro, como na peça, ainda sem título, em que os portugueses da mala voadora (9 a 19 de Novembro, São Luiz) farão uma anatomia das ditaduras do continente a partir dos códigos narrativos da telenovela.

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