Das “brincadeiras inócuas” à aceitação do “poder do mais forte” na praxe

Há uma relação da praxe académica com o carreirismo político? E com a sociedade de consumo, mais individualista? Elísio Estanque, sociólogo, escreveu um livro sobre a praxe, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

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Parece haver um discurso nessas actividades da praxe que veicula esta mensagem: “Tens que aprender a aceitar o poder do mais forte.” Adriano Miranda

Elísio Estanque chegou a Coimbra em 1985, quando a reposição da praxe já se tinha normalizado. Os anos na cidade onde é docente na Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais permitiram-lhe ir acompanhando a evolução dos comportamentos no contexto estudantil.

Foi com base na experiência de observador-participante, mas também em recolha de informação, artigos de jornais e entrevistas, que o sociólogo escreveu um ensaio sobre estes rituais académicos, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, com o título Praxe e Tradições Académicas, que será apresentado nesta quarta-feira, em Coimbra. Todas as citações referidas nas perguntas desta entrevista são retiradas deste livro.

“Depois de passar a usar o traje senti-me outra.” Pedia-lhe para comentar.
Costuma-se dizer que o hábito faz o monge. A ideia de se ter atingido um determinado estatuto que simbolicamente representa um reforço de poder na relação com o grupo, com os mais novos, acaba por influenciar a atitude. Quando a pessoa está num momento de passar a usar por direito próprio o traje, é uma espécie de imagem em que ela se vê com um determinado estatuto. Foi subalterna até um dado momento e a partir dali passa a atingir o verdadeiro estatuto de estudante de pleno direito.

Refere que começaram a surgir os primeiros casos de abuso na praxe a partir dos anos 90 e início do milénio, que corresponde a um período de maior massificação do ensino superior. Há uma relação?
A quantidade e qualidade nem sempre caminham à mesma velocidade. A partir do momento em que se multiplica por n vezes a presença de estudantes no ensino superior, isso também significa uma alteração de qualidade. Criaram-se dinâmicas de massificação. Note-se que essa abertura e massificação são resultado de democracia, de conquistas emancipatórias e absolutamente necessárias para o desenvolvimento de uma sociedade. Porém, não se pode perder de vista que, enquanto a universidade era mais elitista, irreverência, excesso, violência e capital cultural mantinham-se em algum equilíbrio. Com o acesso ao ensino superior, o background cultural de muitos dos estudantes é inferior. A modernização da sociedade foi colocando a universidade sobre uma lógica mercantilista. Todo o tipo de pressões levam a que o estudante venha para a universidade e tenha que acabar o curso em determinado prazo. Por outro lado, Coimbra foi até ao início do século XX a única universidade do país, trazia jovens de todas as origens geográficas, o que ajudou a que a composição social dos estudantes fosse muito cosmopolita. Com a democracia e multiplicação da oferta, as universidades regionalizaram-se. A proximidade estimula as deslocações a casa semanalmente. O período de fixação do estudante na cidade é reduzido.

De que forma é que o menor envolvimento com a dinâmica da cidade se relaciona com aumento de rituais violentos?
Não há uma relação de causa efeito. Mas acho que isso contribui para uma maior superficialidade na relação do estudante com aquilo que são os conteúdos e o significado dos elementos da natureza cultural, informativa que sempre existiram no ambiente académico. As tertúlias, as correntes culturais e literárias que tiveram lugar em muitas cidades universitárias.

A sociedade de consumo estimulou subjectividades orientadas por um certo sentido individualista. Esse sentimento de alguma solidão e propensão para o consumo tem vindo a ser acompanhado por momentos e formas de sedução e atracção que projectam as representações da juventude e estimulam muitos jovens a uma partilha muito exaltada de contextos mais ou menos lúdicos, de excitação, de entrega identitária. A praxe não deixa de ser um ritual de inserção no colectivo que parece compensar esse excesso de individualização de relações sociais. O jovem chega e sente que o grupo é fundamental para conseguir responder às expectativas.

Nem que para isso seja humilhado a dado ponto?
Sim. Também faço referência a um debate que decorreu em Lisboa, em que uma estudante fala do direito a ser humilhada. São vários os estudantes que fazem essa referência e são entusiasticamente aplaudidos por toda a platéia onde se reivindica o direito à humilhação. Isso não deixa de nos interpelar. Parece haver um discurso nessas actividades da praxe que veicula esta mensagem: “Tens que aprender a aceitar o poder do mais forte.”

“A praxe ensina-nos isso. Tens uma pessoa acima de ti quer queiras, quer não.” Estes estudantes vêem isso como positivo.
Exactamente. É isso que nos deixa algo perplexos. Sobretudo a nós, de gerações mais velhas, que aprendemos a valorizar os valores democráticos, o respeito pelo outro, as relações horizontais e de igualdade entre jovens que objectivamente estão na mesma condição. Isso preocupa-me enquanto sociólogo e cidadão. Procura-se naturalizar a ideia de uma sociedade que precisa de ser vigiada, em que o indivíduo só tem sucesso se aceitar o poder, o que pode conduzir a práticas despóticas. Essa possibilidade de poder abusivo, muitas vezes, não é posta em prática. Mas há um pormenor: o mais velho, que está numa posição de poder, depois de uma expectativa de imposição arbitrária do poder pode condescender e não aplicar de facto esse poder. Mas o simples facto de estar a mostrar ao mais fraco que “não te faço mal, mas se eu quisesse fazia” não deixa de ser preocupante.

Associa a cultura praxista ao carreirismo político. Pode explicar porquê?
Tento questionar até que ponto há a relação de uma coisa com a outra. Entrevistei alguns protagonistas que me expressaram de forma bastante clara que os núcleos duros mais politizados, mais próximos de partidos políticos, estão atentos a tudo isso. Quando promovem iniciativas de praxe sabem que, a partir das lealdades que se constroem desde o início, se criam laços que mais tarde dão frutos. Quando mobilizam para a praxe, não há nenhuma justificação a dar, é como no exército. Se isso funciona assim para um acto de praxe, pode mais tarde funcionar para um acto político.

Há quem argumente que a violência que acontece no contexto de praxe não é praxe. Qual o seu entendimento?
Isso é a leitura que os próprios estudantes fazem e a justificação que os mais sintonizados com esses rituais veiculam frequentemente: “A praxe é uma coisa necessária, tem a ver com as tradições, tem que cumprir determinada função integradora e tem todo um conjunto de códigos e valores que é preciso respeitar.” No nosso olhar, enquanto sociólogos, a realidade é aquilo que é, mesmo quando ela, nos seus contornos mais particulares, distorce aquilo que era suposto ser. Essa invocação de uma praxe em estado puro por demarcação dos excessos e abusos não deixa de ser um elemento retórico que tem pouca adesão com a realidade.

Se num dia típico de praxe encontro uma série de meninas a gatinhar com “doutoras” a dirigir o grupo com ordens; vejo jovens alinhados com os olhos no chão a ouvir berros e gritaria de quem está à frente… Posso dizer que são brincadeiras inócuas. Mas também posso constatar que determinados casos espelham uma forma de imposição de um poder, de uma hierarquia, que veicula uma relação de poder que tende a dizer ao mais novo “para estares aqui tens que te submeter”.

O exercício do poder simbólico.
Que se vai reproduzindo e que tende a ser reiterado de geração em geração. Mas acho que os jovens olham mais o lado lúdico [por oposição à violência simbólica], sobretudo depois de passar determinados testes. O teste pode ser uma coisa absolutamente inócua ou irrisória. O jovem caloiro acaba de chegar e depara-se com uma postura mais autoritária dos doutores mais velhos. Mas no final da noite eles vão todos para os copos, para um convívio e ali desfaz-se um pouco aquela clivagem. O jovem de repente fica com a ideia de que, afinal, ele está a ser protegido pelo mais velho.

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