Estado quer levar a "julgamento" mais de cinco mil jovens

Tribunais acolhem julgamentos simulados com juízes reais em projecto que aposta na prevenção da delinquência juvenil.

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Projecto destina-se a jovens dos 12 aos 25 anos. Enric Vives-Rubio

Tiago ergue-se com as vestes de “procurador” e mira o “arguido” sentado de fronte para os juízes. O “arguido” é um rapaz que agrediu violentamente outro jovem há poucos meses. É culpado, pensa, sem hesitar, o “procurador”, confundido a sua realidade com a ficção. Depois quebra, emociona-se, chora. A sessão é interrompida. Tiago (nome fictício) enfrenta o espelho e por baixo da beca de magistrado, que despe, tem 19 anos, dois deles passados num centro educativo, internamento a que foi submetido após ser detido por se envolver em dezenas de roubos à mão armada. Vivia num bairro problemático de Lisboa. O “arguido” e o “procurador” misturam-se. O julgamento simulado em 2015 foi uma das encenações de um programa com aspirações a política educativa.

Neste ano lectivo 2016/17, o projecto Justiça para Tod@s, do Ministério da Justiça e do Ministério da Educação, pretende levar 5500 jovens de 150 escolas aos tribunais de primeira instância apostando na prevenção da delinquência juvenil. Dezenas de jovens, condenados a internamento por terem cometido crimes, também serão envolvidos na dramatização, nos papéis de procuradores, vítimas, testemunhas, advogados, oficiais de justiça e arguidos — colocando-os na lugar dos outros, a Justiça quer sensibilizá-los e resgatá-los de um caminho marcado pelo crime.

“Ele veio ter comigo depois e abriu-se. Disse-me que aquela simulação de julgamento fez mais por ele, ajudando-o a perceber o que ele fez aos outros, do que o julgamento real em que foi admoestado por um juiz”, recorda Paulo Guerra, juiz desembargador, director adjunto do Centro de Estudos Judiciários, quando fala do caso de Tiago, um dos participantes na edição experimental deste programa. O centro que forma juízes e procuradores é, com o Governo, parceiro no projecto promovido pelo Instituto Padre António Vieira.

Destinado a jovens entre os 12 e os 25 anos, é apresentado na segunda-feira pela ministra da Justiça, Francisca Van Dunem e pelo ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, na Fundação Calouste de Gulbenkian, em Lisboa. A primeira fase dos julgamentos simulados começa em Dezembro, ficando a segunda fase para Abril de 2017. O Ministério da Justiça sublinha a importância do programa para a promoção de “valores democráticos de compreensão do funcionamento do Estado de direito”.

O projecto começou com uma fase experimental no ano lectivo de 2014/2015, mas só agora “é que começa de forma consolidada”, explica o presidente do Instituto Padre António Vieira, Rui Marques. Segundo o responsável, “são as instituições que se inscrevem, tendo de existir um professor responsável que identifica um grupo de participantes”. Depois, os jovens podem escolher entre 14 casos diferentes aquele em que vão trabalhar. Entre eles há situações de bullying, violência no namoro, homicídio, tráfico de seres humanos, furto e roubo. Existem ainda processos relacionados com o racismo, a intolerância religiosa e as redes sociais. 

Nos tribunais de todo o país, as sessões serão “sempre presididas por um juiz real”, diz Paulo Guerra. A Fundação Calouste Gulbenkian financia o projecto com 50 mil euros. “Esperamos que este programa venha a integrar as políticas públicas de educação." — é o desejo da directora do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano, Luisa Valle.

“Assim conseguem perceber o outro lado”

“O projecto Justiça para Tod@as possibilita aos jovens uma alteração de contexto através do qual percebem melhor o lugar das vítimas. Assim conseguem perceber o outro lado”, frisa Ana Teresa Ramirez, psicóloga do Centro Educativo da Bela Vista, um dos centros daquele tipo que já participaram neste programa. “Nós participamos de duas formas distintas. Uma vez fomos ao Centro de Estudos Judiciários com jovens e cada um deles desempenhou um papel na sala de audiências e na outra fizemos uma dramatização de um julgamento no próprio centro educativo. Recebemos aqui, no centro educativo, uma companhia de teatro”, acrescenta a psicóloga. Para os jovens, o projecto “tem mais efeitos do que os julgamentos que ocorrem na vida real, até porque quando são julgados não percebem a linguagem da Justiça, apenas percebem que são acusados e culpabilizados.”

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