O maior desafio de Guterres é enfrentar o poder de veto no Conselho de Segurança

Na abertura do seu último debate à frente da Assembleia Geral, a 20 de Setembro, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, lamentou o recorrente bloqueio no Conselho de Segurança que frustrou os seus mandatos: “É justo que um só país disponha de tão desproporcionado poder e possa manter o mundo refém em tantas questões importantes?”, questionou.

Este será um enorme desafio à espera do recém-nomeado sucessor de Ban Ki-moon, António Guterres, o qual será julgado, entre outras coisas, pela sua capacidade de enfrentar violações de direitos humanos cometidas, ou tacitamente aceites, pelas grandes potências mundiais. Guterres tem pela frente a necessidade imediata de confrontar um Conselho de Segurança da ONU que, há demasiado tempo, tem fracassado em lidar com os grandes conflitos, mesmo quando os Estados ou grupos armados cometem crimes horríveis contra civis.

A impotência do Conselho de Segurança tem sido mais flagrantemente exposta na Síria. Os crimes de guerra naquele país estão a tornar-se numa rotina, em que até hospitais e caravanas de ajuda humanitária da ONU são tratados como alvos. E em Alepo os bombardeamentos incessantes estão a provocar o derramamento de sangue e o sofrimento humano a uma escala maciça.

Porque é que o mundo não faz nada enquanto Alepo arde?

Logo desde o início do conflito, há mais de cinco anos, a Rússia e a China vetaram ou bloquearam toda e qualquer acção do Conselho de Segurança que pudesse trazer algum alívio aos civis sírios ou julgar os responsáveis pelos abusos na Síria. A China e a Rússia apenas exerceram realmente o veto sobre a Síria cinco vezes (no total de nove vetos feitos na última década), mas só a ameaça de tal ser feito tem agora o poder de dissuadir os países de apresentarem resoluções espinhosas. O Conselho de Segurança é actualmente refém de um “veto silencioso”.

O Conselho de Segurança foi reduzido a um instrumento disfuncional de posicionamento político entre a Rússia, os Estados Unidos e seus respectivos aliados. A reunião de emergência do início deste mês sobre a Síria recordou as cenas reminiscentes da Guerra Fria, com os embaixadores da França, do Reino Unido e dos Estados Unidos a saírem da sala quando o embaixador de Damasco começou a falar. Até após o aviso dado pelo enviado especial da ONU à Síria, Staffan de Mistura, de que Alepo pode estar já totalmente arrasada antes do ano chegar ao fim, as negociações sobre a proposta de resolução da França (e que acabou vetada pela Rússia no passado fim-de-semana) foram ofuscadas pelo “veto silencioso”.

Ao ficar claro que o poder de veto de Moscovo significaria que a tomada de acção sobre a Síria permanecia improvável, o alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad-Hussein, frisou que as cenas horríveis de Alepo exigiam propostas em que o uso do veto deve ser limitado. A população de Alepo, e, na verdade, todos nós, merecemos melhor.

A Rússia e a China não são os únicos a abusar do sistema de veto. A seguir à Rússia, têm sido os Estados Unidos que mais usaram o poder de veto – mais recentemente em 2011 para bloquear uma resolução que condenava a continuada construção de colonatos por Israel nos Territórios Ocupados da Palestina. E o “veto silencioso” dos Estados Unidos tornou vãs quaisquer esperanças de ser aprovada uma resolução durante o conflito de 2014 em Gaza, no qual morreram mais de dois mil palestinianos, a maior parte civis.

O apoio do Reino Unido e dos Estados Unidos à coligação militar liderada pela Arábia Saudita no Iémen também tem tornado improvável qualquer possibilidade de acção do Conselho de Segurança nesse conflito.

Há duas semanas, a Amnistia Internacional tornou públicas provas de que as forças governamentais do Sudão usaram armas químicas para matar e mutilar centenas de civis, incluindo crianças, no Darfur, em múltiplas ocasiões em 2016. A organização de direitos humanos insta a que seja feita uma sessão especial do Conselho de Segurança para tratar esta questão urgentemente.

Mas, com o todo-poderoso “veto silencioso” é improvável que isso aconteça.

Esta paralisia está a permitir conflitos cada vez mais brutais e ilegais. Nos últimos dois anos, assistimos a mais ataques químicos cometidos por Estados em zonas de guerra, como no Sudão e na Síria, do que em qualquer outra altura nos últimos 25 anos desde a Guerra do Golfo.

O impasse na ONU é agora tão mau que a reforma do veto por si só já não é suficiente. Precisamos do fim da autocensura nas questões urgentes que não chegam sequer a ser votadas, e muito menos ainda a uma resolução do Conselho de Segurança.

Dito isto, o impasse permanecerá até que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança renunciem ao direito de veto em situações de genocídio e outras atrocidades em larga escala. Isto daria à ONU maior alcance e capacidade para agir na protecção dos civis quando estão vidas em grave risco e para enviar um poderoso sinal aos responsáveis por tais violações e abusos de que o mundo não ficará de braços cruzados enquanto estão a cometer atrocidades maciças. Sem o veto seria impossível bloquear acção da ONU sobre a violência na Síria. “Nunca mais” quereria dizer isso mesmo.

Actualmente há duas iniciativas para restringir o uso do veto que estão a ganhar impulso. Uma é liderada pela França e pelo México e reuniu até agora o apoio de 99 países. A outra, com o Liechtenstein à cabeça de um grupo de 27 Estados, maioritariamente pequenos, foi abraçada por 112 países, incluindo dois membros permanentes do Conselho de Segurança: a França e o Reino Unido.

Apesar de o sucesso destas iniciativas dependerem de a China, a Rússia e os Estados Unidos limitarem voluntariamente o seu uso do veto, a melhor hipótese para tal acontecer é que outros países exerçam sobre eles uma pressão internacional sustentada para que parem de pôr os interesses nacionais à frente da protecção dos direitos humanos, e das vidas das pessoas.

A chegada de um novo líder às Nações Unidas pronto a confrontar Estados-membros poderosos logo desde o primeiro dia pode adicionar um impulso importante à campanha em prol das reformas.

O secretário-geral da ONU tem o potencial de exercer uma forte autoridade moral no palco internacional. Pode usá-lo para pressionar intensamente os Estados obstinados que cometem abusos ou que bloqueiam acção para lhes pôr fim.

Guterres tem de usar as prerrogativas de secretário-geral da ONU para colocar as questões vitais no Conselho de Segurança. E como ex-alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, sabe bem o quão importante é reagir a uma crise rapidamente, mesmo que tal obrigue a enfrentar um difícil problema político. Os líderes mundiais têm já demasiadas vezes ignorado sinais claros de desastres iminentes que conduzem à perda de vidas.

O novo secretário-geral pode também manter os direitos humanos e os princípios humanitários no topo e no centro do debate, em vez de serem sacrificados no altar da realpolitik.

Se António Guterres estiver pronto a fazer brilhar uma poderosa luz sobre os problemas mais divisivos que a comunidade internacional enfrenta, ainda pode haver esperança para a ONU, e para o povo de Alepo.

 

Este artigo foi originalmente publicado na Time

 

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