A Anne Frank que sobreviveu vai publicar o seu diário

O diário de Carry Ulreich, uma judia que, quando era adolescente e durante a Segunda Guerra Mundial, também viveu escondida numa casa holandesa, esteve décadas guardado numa caixa de cartão. É lançado na quarta-feira, na Feira de Frankfurt.

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Carry (à dta.) com a irmã, Rachel, em 1939 Editorial Mozaïek

A associação a Anne Frank é tão inevitável quanto imediata, embora os desfechos das suas histórias sejam felizmente bem diferentes. Uma acabou por ser descoberta e morreu no campo de concentração de Bergen-Belsen quando tinha apenas 15 anos, a outra é nonagenária e vive hoje em Israel. Em comum têm a Segunda Guerra Mundial e as raízes judaicas, em comum têm o facto de terem sido obrigadas a esconder-se para sobreviver e de terem mantido um diário dessa experiência.

O de Anne Frank é um best-seller mundial cuja primeira edição está prestes a fazer 70 anos, o de Carry Ulreich permaneceu décadas guardado e será agora lançado durante a Feira de Frankfurt, que começa na próxima quarta-feira e que tem por país tema a Holanda, outro dos elos que as une: as duas viviam no país durante a guerra, um país que não era o seu (Anne foi da Alemanha para Amesterdão, Carry da Polónia para Roterdão).

Conta o diário espanhol El País, antecipando o lançamento da edição holandesa (Editorial Mozaïek), que também Carry se refugiou, ainda adolescente, com os pais e a irmã, Rachel, na casa de uns vizinhos que aceitaram escondê-los para os proteger da perseguição movida aos judeus. Mas enquanto Anne vinha de um meio liberal, em que a religião não tinha grande peso, Carry, então com 16 anos, nascera numa família de judeus ortodoxos, em que o dia-a-dia era regido por uma série de rituais, práticas de que dá conta no seu diário e que, naquele contexto preciso, levaram a alguns conflitos com o pai.

Neste volume que está prestes a ser lançado – o título original em neerlandês pode ser traduzido por “De noite sonho com a paz” – conta como foram os três anos vividos em casa dos Zijlmans, católicos praticantes que os acolheram sem reservas e com quem tinham longas discussões teológicas. Ela sempre se manteve em contacto com eles e, no diário, nota-se bem a proximidade entre todos, apesar das diferenças óbvias: Carry chama aos Zijlmans “papá e mamã II”.

Foram eles, lembrou esta mulher que hoje responde pelo nome de Carmela Mass à imprensa holandesa, declarações agora recuperadas pelo jornal espanhol, que instalaram os Ulreich no seu próprio quarto, uma divisão ampla com janela: “Eles dormiam num espaço sem ventilação onde guardavam as batatas. Conseguem imaginar? E não o fizeram por dinheiro, mas por amor a Jesus.”

Quando os Zijlmans saíam para a missa, os Ulreich tinham de ficar quietos e em silêncio para não levantar a mais pequena suspeita da sua presença.

No livro Carry/Carmela conta, entre muitas outras coisas, como estiveram prestes a ser descobertos pelos nazis, o que não aconteceu graças à pronta intervenção dos seus protectores, e como sonhava ir viver para a Palestina, à data um protectorado britânico: “De noite não sonho com a guerra, sonho antes com a paz, com as pessoas que regressam da Polónia que vou buscar ao comboio […] e que depois vêm connosco para a Palestina.”

Ela cumpriu, em parte, esse sonho. No final da guerra, em 1946, casou com Jonathan Mass, um dos soldados da chamada Brigada Judaica, uma divisão do Exército Britânico composta por milhares de voluntários judeus vindos da Palestina que tinha por principal missão identificar sobreviventes do Holocausto e criar condições para que se fixassem naquele território.

O diário de Carry Ulreich, originalmente escrito em vários cadernos, esteve décadas fechado numa caixa de cartão. Só saiu de lá quando um dos seus filhos decidiu mostrá-lo a uma editora e, assim, ao mundo. Carry teve dois rapazes e uma rapariga e é hoje a matriarca de uma grande família (20 netos, mais de 60 bisnetos). Continua a lembrar-se dos Zijlmans.

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