João Pedro Rodrigues, um animal no seu habitat

Empresta a sua sexualidade, a voz, o corpo, a Santo António. Num filme de metamorfoses, a mais espectacular (ainda assim secreta) é protagonizada por ele. O Ornitólogo, luminosa aproximação ao auto-retrato, chega às salas no dia 20.

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Há aquele momento em Morrer como um Homem (2009), anterior longa-metragem de João Pedro Rodrigues (A Última vez que Vi Macau, de 2012, é realizado pela dupla João Pedro e João Rui Guerra da Mata), em que o filme parte em viagem. Há uma canção de António Variações, e com ela o melodrama desfaz-se no contacto com a natureza. Como se aguentasse e arriscasse entregar-se. Seguramente um dos mais sublimes pedaços de cinema que João Pedro filmou, aquela intromissão da noite dos gambozinos e de lua cheia que durava o tempo de uma canção, Calvary, de Baby Dee, ficava como possibilidade de fuga. Como um filme que Morrer como um Homem gostava de ter sido (como o filme que gostávamos que fosse...).

Essa promessa cumpre-a O Ornitólogo, filme em que também há uma canção de António Variações, filme que desde o início se entrega à natureza (a primeira vez que um filme do cineasta depende dela e é construído com ela), filme que se abre a hipóteses de transformação, metamorfose. À espera de ser ocupado.

É por isso libertador, O Ornitólogo. Livra-se do design e dos desígnios do melodrama como puzzle anunciado - o que aprisionava os anteriores Odete (2005) e Morrer como um Homem, filmes de estufa - e regressa à fábula cândida e perversa que o realizador inscreveu como desejo do seu cinema: não se esquece isto, O Fantasma (2000), a estreia na longa-metragem de um rapaz que quis ser ornitólogo.

Há agora, neste filme dos 50 anos do realizador que chega às salas portuguesas no dia 20, um reencontro com esse inícios: quando via pássaros e se perguntava se os pássaros o viam, isso antes do cinema, e com o travelogue sobre as metamorfoses de uma personagem, que foi o começo do seu cinema. No filme de 2000, um rapaz do lixo ia de transformação em transformação e talvez se estilhaçasse na natureza. No filme de 2016, desenrolam-se as aventuras de um ornitólogo (Paul Hamy), que no seu caiaque observa pássaros em Trás-os-Montes. A natureza não se lhe submete, como num western, e o ornitólogo há-de naufragar, elevando-se de episódio em episódio em direcção à fé que ele dizia que não tinha. Transforma-se em santo — a passagem faz-se pelo erotismo, a transcendência depois da carne, depois de duas chinesas em peregrinação a Santiago de Compostela o iniciarem nas sevícias do shibari (técnica erótica de amarração) e depois das delícias do golden shower por um travesso careto transmontano.

Se O Ornitólogo “é” O Fantasma, é-o depois de tudo o que João Pedro experimentou. Isso inclui um conjunto de filmes a quatro mãos (com João Rui Guerra da Mata), longínqua reinvenção lúdica por terras do Oriente que talvez possa explicar algo do que se passa aqui. Porque O Fantasma não podia ser ainda O Ornitólogo, não tinha esta capacidade de absorver uma diversidade de presenças sem se deixar aniquilar por elas. É novo no cinema de João Pedro a intromissão desestabilizadora de olhares. O ornitólogo olha para as aves e é olhado por elas, o sentimento difuso de ameaça vai sendo galvanizante – um filme como matéria porosa, susceptível de possibilidades e invasões. As “imagens dos pássaros”, por exemplo, não pertencem apenas ao ornitólogo, não são domínio do seu olhar, são também materiais com que João Pedro exercitou a sua paixão de infância. Intrometem-se no filme como matéria documental que não pede licença à ficção. Talvez que tudo se jogue na apropriação que o realizador faz de Santo António, suas aventuras e mitologia: empresta-lhe a sua sexualidade, as palavras, a voz e o corpo. Há aqui matéria para pensar que num filme que se abre a várias hipóteses de transformação, metamorfose e possessão, a mais espectacular (ainda assim secreta) é protagonizada pelo realizador. Participando do jogo que cabe habitualmente às suas personagens, marca o território como um animal no seu habitat. O Ornitólogo é uma luminosa aproximação ao auto-retrato.

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MIGUEL MANSO
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