“Vá. Vamos comer, minha querida Leonor?"

Rede pioneira em Barcelos ensina cuidadores a tratar de dependentes.

Foto
Cuidadores, sempre atarefados, não têm tempo para as suas vidas NELSON GARRIDO

“Vá. Vamos comer, minha querida Leonor?”, pergunta Isabel Oliveira à sogra, acamada há anos, com demência, no quarto lá de casa, em Barcelos, “onde não lhe faltam mimos e todos os cuidados como se fosse um bebé”. Leonor, com 80 anos, anui com a cabeça, com olhar silencioso sem reconhecer a nora, enquanto espera pela primeira colher de comida. “É preciso fazer-lhe tudo. Ando exausta, mas faço por gosto”, conta, enquanto lembra os sustos que já apanhou com “pele a esfarelar e as feridas no corpo que não sabia como tratar”. Se alguém a tivesse ensinado a cuidar da sogra teria sido “muito melhor”, admite.

É precisamente esta formação do cuidador informal (aquele que cuida de familiares ou dependentes em casa) e também formal (técnicos profissionais) que a Rede Local de Cuidados Especializados  — que resulta de uma iniciativa da Câmara de Barcelos, da Associação AVC, e das casas de saúde de S. João de Deus e de S. José —  pretende fazer, no âmbito de um projecto mais alargado e pioneiro no país. E que esta segunda-feira, dia em que se assinala o Dia Mundial da Saúde Mental, arranca em Barcelos. São quatro os projectos, mas, por agora, a rede inaugura o Procuidador — Programa de Intervenção em Cuidadores AVC/Demências e o Gabinete de Apoio Especializado.

“O objectivo é também melhorar a qualidade de vida e bem-estar do cuidador e prevenir a sobrecarga e consequentes problemas de saúde mental associados, como depressão, cansaço e isolamento”, explica a psicopedagoga Raquel Martins, da Casa de Saúde de São João de Deus. É uma das coordenadoras desta nova rede local.

Cansada com “toda esta carga de trabalho”

Isabel Oliveira não reconhece estes problemas, ainda que se sinta cansada, com “toda esta carga de trabalho” ao tratar da sogra, que também sofre de atrofia muscular. Mas a filha Rute Coelho, ao lado, que vai participar nas formações da rede local “para aprender como melhor cuidar da avó”, insiste que “a mãe anda esgotada”. Não tem vida própria, insiste a filha. Se sai de casa é por pouco tempo. Tem quase sempre de regressar a correr. A mãe ouve a filha e encolhe os ombros, porque cuida da sogra por gosto.

Também Bernardete Cardoso, de outra freguesia de Barcelos, anda sempre numa roda-viva entre os recados e os cuidados ao sogro de 80 anos, com Alzheimer e a quem é preciso fazer tudo.  “Olhe que é mesmo muito complicado e cansativo, porque não pára quieto e é preciso andar sempre em cima dele como um autêntico bebé adulto a fazer asneiras”, conta.  

Já Manuel Mano, com os seus 80 anos cheios de boa disposição, também anda sempre a correr de um lado para o outro para cuidar da mulher. Mas ainda consegue arranjar tempo com a ajuda das filhas que o substituem nos cuidados quando precisa de sair e treinar na equipa de boccia da Associação AVC, em Barcelos. Esteve aos cuidados da mulher quando sofreu o acidente vascular cerebral para agora se inverterem os papéis e tratar dela após ser diagnosticada com neoplasia renal em estado paliativo, com quadro demencial.

“Passa o dia na cama e já nem sequer vê as telenovelas de que tanto gostava”, lamenta Manuel Mano. “Este senhor é uma força da natureza. Já vou com outra visão da vida”, atira, ao lado, Rute Coelho, que foi “muito abaixo” quando começou a ver a avó adoecer. “Era a mulher mais bonita e cheia de vida da freguesia.”     

Sugerir correcção
Comentar