Ensaio sobre o apocalipse no arranque do festival Cine’Eco

O Festival de Cinema Ambiental da Serra da Estrela começa este sábado com a exibição de A Suplicação, documentário baseado na obra da Nobel da Literatura de 2015, a bielorrussa Svetlana Alexievich.

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O documentário A Suplicação – Vozes de Chernobyl, do realizador luxemburguês Pol Cruchten dr

O documentário A Suplicação – Vozes de Chernobyl, do realizador luxemburguês Pol Cruchten, baseado no livro homónimo da Prémio Nobel da Literatura 2015, a escritora-jornalista bielorussa Svetlana Alexievich, tem ante-estreia nacional, este sábado, às 21h30, em mais uma edição do Cine’Eco – Festival Internacional de Cinema Ambiental da Serra da Estrela, em SeiaEm parte rodado nas ruínas de Chernobyl, com actores que vestem a pele de quem viveu o desastre nuclear de 1986, o filme de abertura do festival, que termina a 16 de Outubro e está na 22.ª edição, é uma co-produção austríaca e luxemburguesa.

A autora bielorrussa demorou quase 20 anos a escrever Vozes de Chernobyl (ed. Elsinore). Encontrou-se e conversou com antigos trabalhadores da central, cientistas, médicos, soldados, com gente que viveu ilegalmente na “Zona de Alienação” (perímetro de segurança) da central, gente que depois de ser retirada das suas próprias casas preferiu regressar e lá viver escondida das autoridades – Chernobyl era o seu mundo, não apenas a terra e a água estavam contaminadas, estava tudo, por dentro e ao redor. Muitas dessas pessoas ouvidas pela autora viveram pouco tempo mais. Entrevistou 500 pessoas, cada uma delas várias vezes, gravava os testemunhos, editava-os em texto (cada entrevista teria cerca de cem páginas), no final cento e sete dos entrevistados foram incluídos na versão publicada do livro.

O que surge no filme são esses testemunhos, sempre em voz off, encenados por vezes em interiores de casas, de hospitais, de edifícios da era soviética, outras nas ruínas de Chernobyl, que já começam a ser tomadas pela natureza. Há no filme uma linha narrativa que segue a história de amor da viúva de um bombeiro, e que vai sendo entrecortada por outros relatos, que não surgem em forma de conversa. As frases foram buriladas, despojadas, sem fugas ou floreados.

Escreveu Svetlana Alexievich: “Este livro [e este filme] não é sobre Chernobyl, mas sobre o mundo de Chernobyl. Sobre o acontecimento em si já se escreveram milhares de páginas e filmaram centenas de milhares de metros de película. Pois eu ocupo-me daquilo a que chamaria a história omitida, os sinais, sem deixarem sinal, da nossa permanência na terra e no tempo. Escrevo e recolho o quotidiano dos sentimentos, dos pensamentos, das palavras. Tento captar a vida diária da alma. (…) Para elas, Chernobyl não é metáfora, não é símbolo, é a sua casa. Quantas vezes a arte ensaiou o apocalipse, experimentou diferentes versões tecnológicas do fim do mundo, mas agora sabemos com exactidão que a vida é capaz de ultrapassar qualquer obra de ficção científica!” Se quiséssemos resumir A Suplicação - Vozes de Chernobyl a uma frase, ela seria sem dúvida “é um ensaio sobre o apocalipse”, porque é verdadeiramente disso que se trata.

Os factos pura e simplesmente pareciam já não chegar, era preciso ir espreitar por detrás deles, interrogá-los, entrar dentro do significado do que estava a acontecer, daquela nova realidade, do abalo que tudo aquilo provocou sobretudo interiormente, não das decisões do poder de mandar tropas, de mandar levantar helicópteros, de encher as ruas de carros militares, mas sobretudo da mudez, do silêncio que alastrou, do medo, do facto de a Humanidade não ter chaves “para abrir esta porta”. É isto que o filme e o livro fazem, ambos procuram o “homem abalado”, as vozes que lhe chegavam como se atravessassem um sonho, um delírio, um “mundo paralelo”, daqueles que não só enchiam os hospitais mas também as igrejas de crentes que ainda há pouco eram ateus, gente que procurava respostas que a matemática e a física não lhes conseguiam dar. Como se o infinito tivesse deflagrado.

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