Uma história de violência doméstica

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Joan Anton Rechi DR/Retirado do Twitter de Joan Anton Rechi

Durante a montagem da encenação da Carmen de Calixto Bieito no Teatro de São Carlos, Joan Anton Rechi ouviu frequentemente o comentário de que se tratava de “uma produção muito violenta”. A sua resposta remeteu sempre para o conteúdo original da obra.

“É uma história em que o protagonista masculino mata a protagonista feminina! Claro que é uma história de extrema violência, de violência de género.” Este foi um ponto crucial que guiou uma encenação que pretende distanciar-se da visão romântica e enfatizar a questão da violência doméstica.” O responsável por esta reposição em Lisboa recorda que, quando era criança, se um homem matava a mulher, os jornais falavam de um “crime passional”.

Hoje, casos semelhantes são noticiados como violência doméstica, o que mostra uma mudança de mentalidade e do papel da mulher. “Como tal, a visão que temos hoje da história da Carmen também mudou. Numa abordagem romântica, D. José matava Carmen porque a amava demasiado. Agora a leitura é: ‘ou és minha ou não serás de mais ninguém!’, ou seja, é uma atitude doentia e de prepotência.”

 D. José é visto como “um agressor, homem que tem um problema em expressar os seus sentimentos e que tem um lado violento que o levou a matar um homem primeiro (por isso está no exército, porque o deixaram escolher entre ir para a prisão ou o exército) e que depois numa situação limite mata Carmen.”

Joan Anton Rechi conta que através de algumas gravações históricas podemos verificar também do ponto de vista musical e dramatúrgico como evoluiu a ideia das personagens. “Nalgumas interpretações ouve-se claramente no dueto final que Carmen está a provocar D. José e isso faz com que de certa forma se justifique a sua conduta.” Dá o exemplo da gravação de Grace Bumbry e tenta imitá-la, cantando: “Cette bague, autrefois, tu me l'avais donnée... Tiens!”, acrescentando um grito final.

“É uma provocação”, diz. “Nós tentamos fazer de maneira diferente, a cantora canta a frase e atira-lhe o anel — ‘Toma, é teu, não o quero...’ — mas sem a provocação. Ou seja, se me queres matar, matas-me, mas não me matas porque eu te provoquei, mas sim porque tu o decidiste.”

Outro aspecto desta produção que revela um outro lado das personagens femininas diz respeito a Micaela. “Não é a mulher doce e plena de candura que aparece habitualmente”, refere Rechi. “É uma personagem forte, uma mulher loucamente apaixonada por D. José disposta a tudo para conseguir o que quer. Nesse sentido tenta manipular os seus sentimentos.”

No 3.º acto, a última coisa que Micaela diz a D. José é que a mãe dele está a morrer. O encenador acha que isso é mentira — “se fosse verdade teria sido a primeira coisa a dizer” — e que se trata de uma estratégia para levar D. José consigo.

“Também na ária, quando Micaela pede ajuda a Deus, parece-nos tratar-se mais de uma ordem do que de uma súplica. É como se dissesse ‘ajuda-me que eu sou boa e ela é má...’ Este tipo de pistas revela que não se trata de uma mulher doce, mas de uma mulher determinada.”

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