Julgamento que envolve lar de crianças em Reguengos começou à porta fechada

Acusação foi há um ano. Advogados de defesa não comentam alegações feitas contra a ex-directora do lar e o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Reguengos.

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O lar, que passou para a Santa Casa da Misericórdia em 1980, foi encerrado em Maio de 2015 Guilherme Marques

A psicóloga Vânia Pereira começou esta segunda-feira a responder pelos crimes de maus-tratos a crianças e jovens acolhidos no Lar Nossa Senhora de Fátima em Reguengos de Monsaraz, sequestro agravado, abuso sexual e peculato durante os anos em que dirigiu esta instituição entre 2008 e 2014. O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Reguengos, Manuel Galante, responde por crimes de maus-tratos e sequestro agravado, por omissão, num julgamento que envolve seis outros arguidos: duas funcionárias e quatro técnicas do lar da Santa Casa que viria a ser encerrado em Maio de 2015, um mês após a detenção para interrogatório da então directora. As 30 crianças e jovens que aí eram acolhidos foram então distribuídos por outras residências de acolhimento de crianças em perigo. O julgamento decorre à porta fechada no Tribunal Judicial de Évora.

No átrio junto à principal sala do tribunal, Vânia Pereira aguardava esta manhã o início da audiência. Muito mais magra do que nos tempos em que dirigia o lar, que foi tema de uma reportagem PÚBLICO, mantém o olhar fixo por detrás dos óculos, e apenas diz que não vai falar. Está sentada ao lado do advogado que também ele recusa prestar qualquer declaração. No outro lado, está Manuel Galante, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Reguengos de Monsaraz, também acusado neste processo, e a uns poucos metros estão ex-funcionárias e técnicas que trabalhavam no lar.

Da acusação deduzida em 15 de Outubro do ano passado, fazem parte, além da ex-director e do provedor da Santa Casa, quatro elementos da equipa técnica do lar, co-responsabilizados pelos maus-tratos e sequestros, e duas funcionárias que respondem por agressões às crianças. Concretamente, o DIAP de Évora acusou a ex-directora de três crimes de sequestro agravado, 11 de abuso sexual de dependente, sete de maus-tratos e três de peculato. A Santa Casa da Misericórdia da cidade e o respectivo provedor, Manuel Galante, foram acusados por nove crimes de maus-tratos e três de sequestro agravado, todos por omissão.

Defesa em silêncio

Não foi requerida a abertura da instrução deste processo e entre os dez ofendidos referidos no despacho de acusação, consultado pelo PÚBLICO, “alguns apresentaram pedidos de indemnização civil”, segundo o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Évora. Os advogados de defesa dos dois principais arguidos, Jerónimo Santos (de Vânia Pereira) e Leonor Pinto (de Manuel Galante), não falaram ao PÚBLICO, sugerindo apenas que a resposta a estas acusações será conhecida no momento oportuno.

O inquérito, dirigido por uma equipa composta por elementos do Ministério Público de Reguengos de Monsaraz e do DIAP de Évora, foi iniciado em 2011 na sequência de uma participação feita pela Segurança Social e incidiu no período de 2008 a 2014. A directora foi detida para interrogatório a 14 Abril de 2015 e ficou a aguardar o desenrolar do processo em liberdade, suspensa das suas funções e impedida de contactar os jovens da instituição. Dias depois de Vânia Pereira ter sido indiciada, a Misericórdia de Reguengos de Monsaraz admitiu, em comunicado, "agir em conformidade com as responsabilidades criminais" caso se confirmassem as suspeitas de abuso sexual e maus-tratos que recaem sobre a directora técnica. Mais tarde, a Santa Casa e respectivo provedor também seriam responsabilizados na acusação.

O lar, fundado em 1936, ainda como Patronato de Nossa Senhora de Fátima, passou a integrar a Santa Casa da Misericórdia em 1980. O acordo de cooperação entre a Santa Casa da Misericórdia de Reguengos de Monsaraz e o Centro Distrital de Évora da Segurança Social existia desde 1998 e previa visitas periódicas de acompanhamento e inspecções da Segurança Social. O despacho de acusação cita um excerto do relatório de uma dessas inspecções, de Dezembro de 2012: “Não é possível garantir a segurança, mesmo a nível da integridade física das crianças mais pequenas, facto que ressalta dos livros de ocorrências.” O documento faz referência, sem datas, a “agressões físicas e verbais, ameaças e insultos, entre utentes do lar [que] ocorriam com regularidade quase diária, sem que as arguidas, que integravam a equipa técnica, lhes pusessem termo ou tomassem qualquer medida para as fazer cessar”.

Participação da Segurança Social

O PÚBLICO tentou saber, em Dezembro do ano passado, se alguma medida foi tomada pelo Instituto da Segurança Social (ISS) para prevenir a situação e qual o tipo de acompanhamento feito pelos técnicos da Segurança Social, no âmbito das inspecções ou das visitas planeadas. Em resposta, o ISS disse que estando “o processo em curso, não é oportuno” prestar informações. Apenas confirma que “a investigação teve início com a participação do ISS ao Ministério Público na sequência de acção de fiscalização por si efectuada”.

Tal como a escola e a comissão de protecção, também a Fundação Calouste Gulbenkian, que através do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano acompanhava o lar de infância e juventude no âmbito de um projecto de intervenção coordenado cientificamente pelo psiquiatra Daniel Sampaio, não tinha da instituição e da sua directora a imagem reflectida no despacho de acusação.

Nas respostas enviadas em Dezembro do ano passado, a Gulbenkian explicava que a selecção do Lar Nossa Senhora de Fátima para este programa tinha sido feita a partir do trabalho de equipas técnicas “com credibilidade” e com “trabalho reconhecido na comunidade”. A instituição de acolhimento estava entre assim as quatro seleccionadas no país por terem “as propostas mais bem estruturadas com vista ao desenvolvimento de competências de autonomia para os jovens e capacitação das equipas técnicas e educativas”, acrescentava a nota.

E esclarecia: “As visitas técnicas [no âmbito do projecto] realizadas não permitiram retirar conclusões sobre qualquer comportamento ilícito ou de natureza criminal. Caso tivessem sido detectados sinais ou indícios que suscitassem preocupação, estes seriam sempre reportados às entidades competentes e utilizando os canais adequados.”

No Lar Nossa Senhora de Fátima, haveria episódios de instabilidade e de agressividade, que dificilmente seriam contidos, de acordo com relatos feitos ao PÚBLICO. Haveria também dificuldades acrescidas por esta ser uma instituição que acolhia jovens com patologias diversas, algumas graves; e que juntava crianças de idades muito diferentes para não separar fratrias – dos três aos 18 anos, podendo os mais velhos requerer o prolongamento da medida de acolhimento até aos 21 anos.

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