A estreia moderna de uma serenata ouvida pela corte em Queluz

Depois de mais de dois séculos no esquecimento L’Endimione de Jommelli regressa ao Palácio de Queluz graças ao Divino Sospiro no âmbito de um ciclo que dará a ouvir intérpretes como Vittorio Ghielmi, Giuliano Carmignola, La Gaia Scienza e Gabriela Canavilhas.

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Niccolò Jommelli (1714-1774) dr

A Serenata L’Endimione, de Niccolò Jommelli (1714-1774), figura de relevo no campo da ópera e da música sacra em meados do século XVIII e um dos compositores preferidos da corte portuguesa, poderá ser ouvida pela primeira vez no nosso tempo após mais de dois séculos de esquecimento no concerto de abertura do ciclo Noites de Queluz – Tempestade e Galanterie, este sábado às 21h30, no Palácio Nacional de Queluz.

Organizado pelo Divino Sospiro - Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal e pela Parques Sintra – Monte da Lua, este ciclo com direcção artística de Massimo Mazzeo centra-se no património musical produzido entre os finais do Barroco e os alvores do Romantismo, período que coincide com a época áurea do Palácio de Queluz. A estreia moderna da Serenata L’Endimione, de Jommelli, interpretada no Palácio de Queluz a 29 de Junho de 1780 para celebrar o dia onomástico de D. Pedro III (consorte de D. Maria I), coincide com o Dia Internacional da Música (1 de Outubro) e marca o arranque de uma série de nove concertos que até 29 de Outubro dará a ouvir músicos tão destacados como o gambista Vittorio Ghielmi e o violinista Giuliano Carmignola.

O entusiasmo da família real portuguesa pela música de Jommelli (que D. José havia tentado contratar em 1753) toma forma num contrato de 1769, que previa que o compositor italiano enviasse todos os anos para a corte de Lisboa uma ópera séria e uma ópera cómica, bem como várias peças religiosas. Entre 1767 e 1780, mais de 25 óperas e serenatas de Jommelli foram ouvidas em Lisboa, tendo sido neste contexto que a partitura de L’Endimione (hoje na Biblioteca da Ajuda) chegou à capital portuguesa.

Escrita a partir de um libreto de Pietro Metastasio, que desde 1721 serviu de inspiração a inúmeros compositores (incluindo o português João de Sousa Carvalho em 1783) e que se centra na atracção exercida pelo jovem e belo pastor Endimião perante Diana e as suas ninfas, a versão de Jommelli teve a sua estreia em Estugarda em 1759, sendo depois algo modificada no âmbito da execução em Queluz em 1780. Nessa ocasião a obra foi tocada pela Orquestra da Real Câmara e cantada pelos castrati Carlo Reina (Endimione), Giovanni Ripa (Diana), Giuseppe Orti (Silvio) e Giuseppe Totti (Amore), todos “Virtuosos da Capela Real” — um elenco inteiramente masculino na linha da tradição romana que vigorava desde o reinado de D. João V nos teatros da corte de Lisboa.

De modo a corresponder às tessituras agudas, a estreia moderna será interpretada apenas por mulheres, nomeadamente pela meio-soprano Lucia Napoli e pelas sopranos Milena Georgieva, Bárbara Barradas e Margarida Pinheiro, em conjunto com o Divino Sospiro, sob a direcção de Massimo Mazzeo.

O hábito de comemorar aniversários e dias onomásticos da família real através de uma serenata (obra dramática de dimensões mais reduzidas do que a ópera, frequentemente com temática alegórica, pastoril ou mitológica) tinha sido instituído em Portugal pela rainha D. Maria Ana de Áustria, consorte de D. João V. No tempo de D. José ficou em segundo plano em relação à ópera, mas no reinado de D. Maria I ganhou redobrado fôlego, tendo sido inúmeras as serenatas apresentadas nos palácios de Queluz e da Ajuda da autoria de compositores como David Perez, Jommelli, João de Sousa Carvalho, João Cordeiro da Silva, Jerónimo Francisco de Lima, Luciano Xavier dos Santos e António Leal Moreira, entre outros. 

Viagens pela música europeia

Além da recuperação da obra de Jommelli, o ciclo Noites de Queluz – Tempestade e Galanterie inclui até 29 de Outubro várias outras propostas apelativas. Já no dia 8 (às 21h30, na Sala da Música), Vittorio Ghielmi, notável intérprete de viola da gamba,  e Florian Birsak (pianoforte) apresentam um programa com algumas das últimas obras dedicadas a este expressivo instrumento de cordas friccionadas que viria a cair em desuso a partir da segunda metade de setecentos.

Entre os seus últimos cultores contam-se Carl Friedrich Abel, Johann Christian Bach, Andreas Lidl, Muzio Clementi e Carl Ph. E. Bach. No dia 14, o agrupamento alemão Compagnia di Punto interpreta música de Antonio Rosetti, Haydn e Mozart, e a 15 de Outubro, Rogério Rodrigues, um jovem português radicado na Holanda especializado em pianos históricos, tocará no pianoforte Clementi do Palácio de Queluz o programa Dois virtuoses do pianoforte e um lusitano em Paris, preenchido com obras de Mozart, Clementi e Domingos Bomtempo.

Giuliano Carmignola, uma das actuais estrelas do violino com uma carreira de vulto no repertório setecentista, apresenta-se no dia 20 com a orquestra Accademia dell’Annunciata e o cravista e maestro Riccardo Doni no âmbito do programa Um virtuose italiano na Inglaterra georgiana (com obras de J. Ch. Bach, C. Ph. E. Bach, Felice Giardini e Carl F. Abel) e no dia 22 será solista no concerto Um serão com Beethoven, acompanhado pela Accademia dell’Annunciata e pelo Divino Sospiro, sob a direção de Massimo Mazzeo.

A 21 de Outubro, a pianista Gabriela Canavilhas, em colaboração com a orquestra Concerto Moderno, dirigida por César Viana, será responsável pelo concerto-palestra Um compositor português no tempo de Napoleão, dedicado a João Domingos Bomtempo, e no último fim-de-semana do ciclo será possível assistir a Um passeio pelo Classicismo europeu conduzido pelo Helianthus Ensemble – composto por Laura Pontecorvo (flauta), Iskrena Yordanova (violino), Marco Ceccato (violoncelo) e Guido Morini (cravo) —  e ao programa “Três trios da trindade vienense”, com música de Haydn, Mozart e Beethoven,  pelo agrupamento La Gaia Scienza (dias 28 e 29).

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