O monte alentejano simboliza a rebeldia dos povos do sul contra um Estado embrionário

No final do século VII a. C, os povos do sudoeste peninsular revoltaram-se contra a emergência de uma estrutura embrionária de Estado sob influência fenícia. As famílias dispersaram-se pelos campos gerando agregados mais autónomos e um tipo de habitação que prevalece nos dias de hoje.

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O aparecimento do tipo de construção a que hoje chamamos o “monte alentejano” tem as suas origens no início da I Idade do Ferro, século VII a. C. António Carrapato

O aparecimento do tipo de construção a que hoje chamamos o “monte alentejano” tem as suas origens no início da I Idade do Ferro, século VII a. C. e surge na sequência de deslocações maciças de pessoas dos grandes povoados, que marcaram a estrutura da sociedade durante a Idade do Bronze, e que se dispersaram pelo interior do sudoeste peninsular. Fizeram-no em revolta contra um novo modelo da sociedade trazido pelos fenícios e que esboçava já o que haveria de ser o Estado.

Este acontecimento histórico, que tem sido confirmado por vários investigadores, “revela a incapacidade da sociedade em dar o salto para modelos mais complexos de organização”, explicou ao PÚBLICO o arqueólogo Rui Mataloto, que tem desenvolvido intensas pesquisas sobre a origem e o contexto do “monte” como estrutura habitacional.

Após anos de pesquisa em diversos pontos do Alentejo Central e Baixo Alentejo, o arqueólogo concluiu que a concepção estrutural do monte “é qualquer coisa que não lembra ao diabo”. E explica: “O monte foi concebido, há mais de 2500 anos, com base na arquitectura mediterrânica transmitida pelos fenícios, logo, é um modelo urbano que preza a privacidade do espaço, ao ser organizado em torno de pátios que evitam a observação exterior”. O paradoxo está neste modelo habitacional que “não faz sentido no Alentejo onde temos paisagens que nunca mais acabam, com o vizinho mais próximo a ficar lá não sei onde, o que permitia, a quem neles residisse, a andar nús e ninguém reparava” acentua o investigador.

Mas de onde chegou a influência que levou as comunidades do sudoeste peninsular, sobretudo as que estavam instaladas no território hoje abrangido pelo Alentejo Central e Baixo Alentejo, a optar por uma arquitectura rectangular de pedra e de terra, com modelos e módulos de cariz mediterrânico que vieram substituir as cabanas de plano circular?

A mudança no modelo de habitação acontece nos finais do século VII e teve a sua ascensão no início da Idade do Ferro. Os dados mais recentes da investigação arqueológica confirmam que os grandes povoados da altura são desagregadas e as pequenas comunidades espalham-se pelo interior território, dando lugar a uma realidade centrada no campo que passou a estar ocupado por um conjunto de pequenas ocupações de cariz rural com uma estrutura base do ponto de vista social, assente na família.  

Para além da questão arquitectónica há também uma questão técnica que é incorporada. “Esta gente construiu no meio de nenhures, no Alentejo, complexos arquitectónicos com o conhecimento que adquiriu certamente no litoral de onde foi transmitido através de comunidades exteriores”, nomeadamente fenícia, que se radicaram em feitorias junto à costa no território hoje delimitado pelos concelhos de Alcácer do Sal, Setúbal e Lisboa, assinala Mataloto.

“Há uma importação de técnicas no modo de construir e de uma organização do espaço de características mediterrânicas numa realidade espacial onde não seria obrigatório”, reafirma o investigador, frisando que, na região de Beja, à semelhante do que aconteceu no Alentejo central, “temos um território que entre os finais do século VII e século V se estruturará em torno das pequenas comunidades rurais dispersas”.

Viviam em habitações construídas em terra e pedra, espalhadas pela paisagem, que o arqueólogo interpreta como antecedentes dos actuais montes “e da própria fundação do território como aquele que hoje conhecemos” e até seriam, “muito provavelmente, pintados de branco como eram as da região mediterrânica”, assinala.

As comunidades rurais assim formadas, que viviam da agricultura e da criação de gado, acabaram por gerar uma nova paisagem e, ao mesmo tempo, uma nova identidade. Um conjunto de sítios escavados no Alentejo central e na região de Beja indicam que os povoamentos eram semelhantes e procuraram bons solos. Mas também foram encontrados alguns povoamentos que ocupavam áreas onde a qualidade dos terrenos evidenciava pobreza agrícola.

As pequenas ocupações de tipo “monte” instalam-se sobretudo junto a linhas de água permanentes e pequenas várzeas, localização que evidencia o carácter agrícola, ou agro-pastoril, destes agrupamentos populacionais.   

Com a deslocação em massa para o interior, assiste-se à emergência de um verdadeiro começar de novo que não tem nada a ver com tudo o que lhe antecedeu ao longo da Idade do Bronze. Só o mundo dos mortos foi respeitado e colocado no patamar do sagrado, mantendo invioláveis dolmens, antas, menhires ou estelas que permaneceram no território ocupado.

No entanto, este novo mundo interior, depois da ruptura com as novas formas de estruturação social que estavam a ser impostas por um modelo ainda embrionário de Estado, veio a revelar mais uma contradição: afinal as comunidades que optaram pelo mundo rural, não se tinham desligado das realidades do litoral.

Isolados no interior, contrários à inovação social, rebelando-se contra as imposições de um proto-Estado, sentiram, mesmo assim, necessidade de manter pontos de contacto com a realidade exterior.

Rui Mataloto realça a importância de “compreender o papel de Alcácer do Sal e de Mértola que sempre foram os grandes portos do Alentejo” por onde entravam as grandes novidades ao nível das artes e da indumentária. Através delas “afluía uma presença externa muito forte e a partir das quais se fez a ponte com o Alentejo interior” descreve o investigador, realçando que “é a partir dos meados do século X que toma corpo a presença fenícia”, ou seja: a partir do litoral consolidam-se ligações muito fortes ao mundo mediterrânico, que servem de porta de entrada a todo um conjunto de realidades que depois irão influenciar o mundo interior.

O investigador salienta que “não se trata de uma invasão fenícia, com exércitos a penetrar pelo Alentejo adentro. Os fenícios seriam uma meia dúzia deles que se instalaram no litoral acabando por influenciar com as novidades que traziam do exterior, as comunidades locais”. O interior nunca de desenvolveria sozinho. Teria sempre de ter ligações externas e essa dinâmica ajudou a estabelecer novas identidades.

Os fenícios introduzem ainda uma forte influência a nível da indumentária. Os historiadores clássicos mencionam que Alcácer do Sal era conhecida pelos seus têxteis. E é desta nova realidade de que nos chegam aos dias de hoje as fíbulas, que no fundo eram alfinetes de dama, os fechos de cinturão, braceletes, datados dos século VI e V. “Há vestígios de uma imagem nova que se desenvolve e que representa uma novidade”, sublinha Mataloto, destacando a sua influência até na construção das habitações “nomeadamente ao nível dos muros e da dimensão das salas com a utilização do côvado fenício” que foi comprovado por ter 52 centímetros.

Também a quinquilharia que os fenícios vendiam às comunidades da região de Beja, revela como as pessoas do interior, nomeadamente as mulheres, já sentiam uma apetência muito grande pelas influências da moda vindas de fora. “Ainda que as realidades sejam locais, a indumentária segue a tendência global, tal como hoje” observa o arqueólogo.

Mais interessante ainda é perceber que o “monte ” tal como existe no interior alentejano é um termo de origem fenícia que significa precisamente o mesmo que a “herdade” de origem latina, ou seja, “herança”, “a parte que se herdou”.

Os dados recolhidos por Rui Mataloto revelam que “há poucas regiões onde ainda prevaleça o tipo de ocupação rural como aquela que nós vemos no interior do Alentejo”, frisando que permanece uma “proximidade muito grande” no modo de construir o “monte” desde há mais de 2500 anos até praticamente aos anos 50 e 60 do século passado.

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