Para memória futura

Sem a perseverança do Dr. João Ribeiro Santos, provavelmente o Movimento Direito a Morrer com Dignidade ainda não existiria.

Ao nível da historiografia, os inícios de um movimento cívico importante são sempre preciosos. Quem foram verdadeiramente as pessoas envolvidas? Que papel coube a cada uma delas? O que fez com que o movimento arrancasse? Para estas questões, concretamente no que diz respeito aos movimentos ditos right-to-die, fui vivamente alertada em 2009 pelo professor americano, naturalizado holandês, John Griffiths, aquando da minha estadia na Universidade de Groningen, num programa de pós-doutoramento. John Griffiths, professor emérito de Sociologia do Direito, era então coordenador de um programa de investigação sobre “Regulação do comportamento médico socialmente problemático”, que sucedia a um anterior intitulado “Comportamento médico que potencialmente encurta a vida”. Desse programa resultou um livro notável, Euthanasia and Law in Europe, sobretudo um ensaio  de sociologia comparada do direito no que diz respeito à morte assistida e às questões de fim de vida, com considerações a tocarem já o âmbito filosófico.

O que acaba de ser dito surge para enquadrar a referência que pretendo fazer ao outro co-fundador do Movimento Direito a Morrer com Dignidade, Dr. João Ribeiro Santos, médico nefrologista, falecido a 4 de Setembro deste ano, com 72 anos.

Em 2009, quando ainda era director do Serviço de Nefrologia do Hospital Curry Cabral, enviou-me uma carta muito simpática em que me desafiava a encabeçar um movimento cívico que visasse lutar pela despenalização da morte assistida. Escrevia: “Por motivos éticos, pessoais e profissionais (na nefrologia lida-se diariamente com a progressiva degradação física, com o sofrimento e com a morte), a morte assistida faz parte, desde há muitos anos, da minha área de interesse e discussão”. Tinha lido o meu livro Ajudas-me a morrer?, num período de férias e doença, estivera presente no seu lançamento em Lisboa, e ficara convencido de que eu era a personagem indicada para encabeçar esse Movimento. De qualquer modo, na sua independência de espírito, não se abstinha de lançar uma crítica lateral ao livro: a minha “obsessão” pelos ‘o/a’ e ‘os/as’, que a seu ver dificultava por vezes a leitura e considerava algo “inestético”. Evidentemente, não foi por causa desta crítica que lhe disse na altura não poder aceitar o desafio. O problema é que tivera recidiva do cancro da mama em 2007 e a vida na Universidade era para mim cada vez mais esgotante. Onde encontrar tempo para tal iniciativa?

Na carta que me enviou o João informava-me de que já em Maio de 2007, no Congresso Português de Nefrologia, dentro da sessão inaugural por ele organizada, existira um painel de nove pessoas a discutirem a questão da morte assistida. Para além dele próprio, mais três médicos – Alfredo Loureiro, Eduardo Barroso e Miguel Leão –, assim como António Barreto, Maria Filomena Mónica, António-Pedro Vasconcelos, José Júdice e Marcelo Rebelo de Sousa. Com excepção de dois dos presentes (“adivinhe quem”, dizia-me), todas as outras pessoas tinham defendido a despenalização da morte assistida, com maior ou menor veemência. Mais: antes da discussão, “uma sondagem electrónica efectuada aos cerca de 300 profissionais” presentes (nefrologistas e enfermeiros da área) “revelou que 81% concordavam [...] com a eutanásia e 63% com o suicídio assistido”.

O João aproveitava para me dar outras informações relevantes, como por ex. o facto de, em Abril de 2008, ele e o colega Alfredo Loureiro terem enviado ao Presidente da Ordem dos Médicos uma carta sugerindo que a Ordem debatesse a questão no seu seio. Resposta: nenhuma. Dava também conta de outras iniciativas que devem ficar registadas.

Abreviando: em Novembro de 2014, antes de um Prós e Contras sobre a eutanásia, o João e eu jantámos, tendo-me lançado outra vez o desafio. Foi tão persuasivo e empático que não consegui dar-lhe mais uma resposta negativa. Nessa altura já eu fora obrigada a pedir a aposentação por agravamento da saúde. Mas tivemos de esperar por Novembro de 2015 para lançar o Movimento numa reunião no Porto.

A meu ver, sem a perseverança do João, provavelmente o Movimento ainda não existiria. Lamento que a nossa aproximação tenha sido tão tardia, pois encontrei nele um homem inteligente e culto, honesto, terno e compassivo, cheio de humor apesar da doença, entusiasmado com a “causa”, sem qualquer sede de protagonismo. Neste últimos anos, muitos desesperados lhe devem e-mails de conforto e carinho. Tenho saudades das nossas conversas frequentes ao telemóvel, pois já eram conversas de amizade. Que outros possam substituir com o mesmo empenho aqueles que partem. Até sempre, João.

Professora Aposentada da UMinho e co-fundadora do Movimento Direito a Morrer com Dignidade

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