O Livro dos escritores e dos filósofos

A Bíblia também é um objecto literário? Que relação se estabelece com este objecto? António Bracinha Vieira, Maria Filomena Molder, Fernando Belo respondem.

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A primeira pergunta que o público leigo fez foi esta: porquê a tradução de uma Bíblia integralmente grega? Codex Sinaiticu

Em 2001, a editora francesa Bayard publicou uma tradução da Bíblia, coordenada por Frédéric Boyer, que provocou uma enorme polémica e foi objecto de críticas virulentas. Foi chamada “A Bíblia dos Escritores” porque o trabalho de tradução foi entregue a 20 escritores franceses que realizaram o seu trabalho em colaboração com 27 exegetas. Cada escritor tinha pelo menos um estudioso da Bíblia para trabalhar com ele, para lhe dar as necessárias explicações linguísticas, teológicas e históricas. O princípio era de ordem literária: os escritores podiam saber muito pouco ou quase nada da ciência bíblica, mas deviam chegar a uma versão literária, em francês, do texto bíblico. Tratava-se de levar às últimas consequências a ideia de que não há textos sagrados, eles só se tornam sagrados pela utilização e interpretação que se faz deles. E, neste caso, a tarefa a que os escritores responderam como um desafio consistia em exacerbar o acto literário de traduzir. Esta Bíblia abandonava assim aquela ideia que guia quase sempre os seus tradutores: a de produzir uma tradução mais autêntica do que as outras. E a mais autêntica, neste sentido, é a que melhor permite o acesso à língua original, ao texto primeiro. Ora, Frédéric Boyer e as duas dezenas de escritores que aceitaram a tarefa situaram-se, à partida, num outro tipo de relação com o texto bíblico e deslocaram o centro de gravidade dos debates sobre a tradução. Eles não fizeram apenas uma tradução não confessional, fizeram um exercício de conversão do texto bíblico a uma realidade de ordem literária completamente profana.

Em Portugal, podemos também recensear confrontos literários recentes com alguns livros da Bíblia. Fiama Hasse Pais Brandão traduziu o Cântico dos Cânticos (publicado em 1995), dando-lhe um nome que ele também tem em hebreu: Cântico Maior. Outra tradução desse poema bíblico foi feita por José Tolentino Mendonça, que é certamente o poeta contemporâneo mais próximo dos temas e do texto bíblico (do qual, aliás, é um estudioso, na sua condição de padre e teólogo). Esta tradução, publicada pela Assírio & Alvim, foi ilustrada por Ilda David, uma artista que intensificou nos últimos anos a relação do seu trabalho de pintura com a imagética bíblica. E poderíamos falar também de um outro poeta que operou um trânsito intenso e complexo entre o texto profano da poesia e o texto sagrado das Escrituras: Daniel Faria, que enveredou pela vida monástica e morreu de acidente aos 28 anos.

Podemos intuir que a leitura da Bíblia foi muito importante para António Vieira, que se tornou conhecido como escritor quando em 1991 publicou o Doutor Fausto. Professor de três novas disciplinas, psicopatologia, etologia e evolução humana, António Bracinha Vieira (é assim que assina enquanto professor e cientista) move-se com uma rara agilidade entre as ciências humanas e as biológicas. Eis o seu testemunho: “Confrontei-me com a Bíblia ao estudar história das religiões, e li os textos sagrados de que dispunha na época, traduzidos em línguas que entendia. O meu interesse por conteúdos bíblicos deslocou-se para o domínio da literatura: encontro neles uma incitação constante, quase uma provocação para reflectir e escrever. A Bíblia, também o Talmud, por fim a Cabala, contêm sementes inesgotáveis de literatura. Kafka colheu-as e semeou-as com o efeito que sabemos. Falo do Velho Testamento, que para mim é a Bíblia. Nietzsche mostrou como os dois Testamentos são radicalmente diferentes em linguagem, estilo e projecto religioso, e como é surpreendente que se possam reunir para formar o Livro! Acompanhei descobertas, métodos e técnicas que explicitaram a origem e evolução do homem. Reflecti sobre o problema da origem e evolução da linguagem, numa perspectiva oposta à da Bíblia: em vez de perda de uma linguagem adâmica, procurei uma origem elementar, deriva das vocalizações de antropóides para um esboço de articulação verbal, cuja vantagem pragmática seria premiada pela selecção natural. Voltei à Bíblia muitas vezes. Tive anos de leituras bíblicas, em solidão concentrada, ao contrário dos judeus, que lêem a Bíblia em diálogo”.

A verdade é que nem a cultura bíblica nem a disciplina teológica têm, ou tiveram, entre nós, grande irradiação pública. Por isso, é quase excepcional que uma prestigiada professora de Filosofia, Maria Filomena Molder, consagrada tanto pelo seu magistério universitário como pelos seus ensaios, tenha proferido quatro conferências, na Culturgest, há quase dois anos, que consistiam numa leitura muito literária do Eclesiastes. Dessa leitura, poderíamos pensar que Maria Filomena Molder tem uma relação mais próxima com o Antigo Testamento do que com o Novo. Instada a falar disso, respondeu: “A diferença entre Antigo e Novo Testamento é cristã e eu tive uma educação cristã. Sempre achei natural essa divisão. Agora já não acho natural. Li e ouvi ler muitas vezes os Evangelhos, as Epístolas e os Actos dos Apóstolos. Li menos vezes, se bem que me impressionassem cada vez que os lia: o Génesis, os Salmos, o Cântico dos Cânticos, o Livro de Job.

O Eclesiastes causava-me calafrios, pois a leitura barroca, pessimista e caluniadora da vida, vingava. Foi Guido Ceronetti, e depois Haroldo de Campos, que me ensinaram a fazer justiça a um texto, que me parece ter sido sempre injustiçado através da leitura cristã. Há leituras críticas que assentam numa base confessional e doutrinária, não é o meu caso. Essas são as teológicas propriamente ditas. Walter Benjamin é um bom exemplo de uma leitura não confessional nem doutrinária, mas não é um bom exemplo de ‘leitura crítica’. Enquanto filósofo ele sabe que nenhum argumento teológico tem validade. E, no entanto, as crenças e os textos religiosos têm um papel relevante no seu pensamento. Corrigindo a parcialidade da concepção da história de Horkheimer, que o acusa de fazer intervir a crença no Juízo Final, Benjamin declara que a história não é apenas uma disciplina científica, mas um acto de rememoração: que a infelicidade não encerre para sempre os mortos na dor, e a felicidade possa ser vivida uma vez mais por aqueles que estão vivos”.

Também com um assinalável percurso enquanto professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Fernando Belo é um leitor e estudioso da Bíblia, com uma obra importante publicada. Eis como ele conta o seu percurso: “Faz 60 anos que acabei uma licenciatura em engenharia civil e entrei para um seminário, onde tive um extraordinário professor de Filosofia, o P. Honorato Rosa. Fui padre sete anos (capelão da Base Aérea da Ota, professor de moral do Liceu Camões, despedido no fim do ano, prior da Baixa da Banheira), em 1968 acabei teologia em Paris e desliguei-me publicamente da Igreja. Em 1974 publiquei Lecture matérialiste de l’évangile de Marc. Récit, pratique, idéologie. Foi o que me deu currículo para Filosofia em Letras, em tempos de revolução.

A tese de doutoramento (em Linguística!, não tinha diplomas para ser em Filosofia) foi sobre a epistemologia da semântica saussuriana e já com influência dominante de Derrida. A minha leitura de Marcos, à maneira do S/Z de Roland Barthes, foi considerada por exegetas de língua alemã entre as principais 50 obras de leitura bíblica desde o século XIX.A filosofia e o cristianismo têm uma história comum a partir da obra do filósofo platónico cristão Orígenes de Alexandria (185-254), o criador da teologia cristã. As universidades medievais são o ponto mais alto desse encontro. O desafio que enfrenta Frederico Lourenço é o de tanto a Bíblia hebraica como a cristã serem antropologicamente hebraicas, mas as suas versões gregas, a cristã escrita em grego por judeus, terem sido depois relidas teologicamente, mesmo na liturgia, segundo essa redução ignorante das categorias hebraicas: mas foram estas que suscitaram frequentemente heresias, o que levou a cristandade a fechá-la em latim, quando as populações deixaram de conhecer a língua.”

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