As mochilas e as colunas tortas

Da mesma forma que as andorinhas surgem com o nascer da Primavera, no início do ano escolar levanta-se o problema das mochilas pesadas e o medo de a coluna vertebral dos jovens poder ficar torta.  

Como dediquei uma boa parte da minha vida profissional a tratar deformidades vertebrais dos jovens que, por vezes, exigem longas e complexas cirurgias, julgo oportuno abordar algumas ideias erradas que continuam a influenciar pais, familiares e a opinião pública em geral.

Que as mochilas escolares têm muitas vezes, nos países economicamente desenvolvidos, um peso exagerado, é um facto. Frequentemente ultrapassam 10 a 15% do peso do corpo, que é o valor geralmente tido como aceitável em muitos estudos. E a verdade é que o peso excessivo, para além de ser desaconselhado pelo simples bom senso, é causa de cansaço, dores musculares e, pior do que isso, de quedas ou acidentes potencialmente graves, por alteração do centro de gravidade corporal.

Mas, para além disso (que já não é pouco), será que a coluna vertebral dos jovens pode ficar torta por causa do peso das mochilas?

Na realidade, não. Há muito que se sabe que as mochilas pesadas (assim como as "más posturas"), não são causa das deformidades vertebrais que, por vezes, surgem em crianças ou adolescentes, nomeadamente de escolioses (encurvamentos predominantes no plano frontal), ao contrário do que frequentemente é referido em anúncios, comentários ou artigos sem qualquer base científica.

Contrastando com o que acontece nos idosos em que as deformidades da coluna vertebral estão habitualmente ligadas à fragilidade óssea (osteoporose) ou desgaste (espondilartrose) vertebrais, a escoliose que surge em jovens “normais”, isto é, sem qualquer outra doença associada (malformações congénitas, paralisias ou outras), é uma doença do crescimento vertebral cuja verdadeira origem ainda se desconhece, designando-se, exactamente por isso, por escoliose idiopática, tendo este último termo esse significado – causa desconhecida.

Na realidade, este tipo de escolioses que surge em crianças e, principalmente, em adolescentes "normais", constitui a esmagadora maioria das deformidades da coluna que podem surgir durante o crescimento, e como acontece em relação a algumas outras doenças em que a percepção da população em geral (e até de técnicos da saúde mal informados) está muito afastada do que realmente se sabe, também em relação à escoliose idiopática pululam conceitos errados sobre a sua origem e tratamento, há muito descartados pela comunidade científica que se dedica a esta patologia.

A escoliose idiopática, que é mais frequente na adolescência e no sexo feminino, desde há décadas que é alvo de intensa investigação, existindo mesmo uma prestigiada associação internacional (Scoliosis Research Society) que agrega os esforços de investigadores de diversas áreas científicas que procuram aprofundar o conhecimento desta "misteriosa" doença.

Muitas hipóteses foram postas ao longo do tempo (ex: mecânicas, hormonais, neurológicas, vasculares, alterações dos músculos ou de outros tecidos), sem que se tenha conseguido obter respostas totalmente satisfatórias.

Sabe-se, contudo, que a escoliose idiopática não está ligada a qualquer sobrecarga ou esforço mecânico, não tendo qualquer relação com más posturas, encurtamento de membros ou traumatismos.

A deformidade parece ser condicionada por factores genéticos que intervêm de forma complexa. Na realidade, se um dos gémeos homozigóticos (gémeos "iguais") tem uma escoliose, a probabilidade de o outro também ter a deformidade varia entre 70 a 90%, o que é imensamente superior à que se verifica na população normal, pelo que restam poucas dúvidas sobre essa marca genética, embora não se conheça nem a forma nem o mecanismo que originam a alteração do crescimento vertebral.

Por outro lado, pequenas escolioses, a maioria das quais nem sequer são detectadas, observam-se em cerca de 10% da população adolescente (9% dos jovens portugueses entre os 9 e os 15 anos, segundo Palma Rodrigues, 2002). Contudo, a maior parte destas curvas permanece discreta ou melhora espontaneamente (escolioses resolutivas), e só uma pequena percentagem (5 a 10%) continua, por razões desconhecidas, a agravar-se durante o crescimento podendo originar deformidades esteticamente inaceitáveis que necessitem de tratamento.

De qualquer forma, os factores mecânicos como o peso das mochilas, más posturas ou pequenas diferenças de comprimento dos membros inferiores que existem na população normal (cerca de 7mm em 50% da população, segundo J.Massada, 1990) não têm qualquer influência no aparecimento nem na evolução da escoliose dos jovens, ao contrário do que por vezes é referido.

Também em relação ao tratamento existe uma profusão de métodos, alguns tidos como consensuais, que se sabe não terem qualquer eficácia, e é muito habitual que os jovens com escoliose desatem a nadar procurando assim tratar a deformidade, cuja melhoria ou agravamento em nada é influenciada por isso.

Em primeiro lugar, há que referir que a maioria de pequenas curvas (ângulo de Cobb menor que 30º) são resolutivas, isto é, não se agravam e até podem melhorar espontaneamente com o crescimento, não necessitando, por isso, de qualquer tratamento. É nestas deformidades benignas que muitas medidas, enganadoramente terapêuticas, baseadas na correcção da postura ou na tonificação muscular aparentam ter bons resultados que, contudo, se confundem com a evolução natural que se observaria se não tivessem sido sujeitas a qualquer "tratamento".

Quanto às escolioses progressivas, que constituem o verdadeiro problema, não se conhece nenhuma medida descontínua, isto é, que possa ser praticada apenas algumas horas por dia (ex: natação, tracções, fisioterapia, estimulação eléctrica, acupunctura, ioga, manipulações vertebrais, exercícios posturais ou outros) que melhore, atenue ou de qualquer forma influa na evolução da deformidade. Como a doença, ao contrário do que acontece nos idosos, não está ligada a debilidade muscular nem a fragilidade ligamentar ou óssea, nenhuma medida desse tipo tem qualquer influência na sua evolução.

Não existe um único caso descrito de uma escoliose idiopática marcada (ângulo de Cobb superior a 35º) que tenha melhorado com qualquer dos métodos atrás referidos pelo que, quem o descreva e verdadeiramente o comprove tem assegurada fama a nível mundial.

O uso contínuo de coletes pode ser útil para travar o agravamento (não para melhorar), sendo o tratamento cirúrgico o único capaz de corrigir a deformidade, estando indicado quando ela é muito acentuada.

Quanto às cifoses (aumento da curvatura no perfil), também nelas o papel das mochilas não deve ser hipervalorizado. As verdadeiras deformidades rígidas e irredutíveis (e não simples posturas que desaparecem quando a pessoa se endireita) são raras nos jovens sem patologia associada. E embora na adolescência surjam casos pontuais da chamada cifose juvenil ou doença de Scheuermann, causada pelo amolecimento da parte anterior das vértebras, as mochilas não são causa da doença e houve até uma época em que eram aconselhadas por condicionarem uma atitude postural anticifótica projectando os ombros para trás.

Pode-se por isso dizer que, quanto a entortar a coluna dos jovens, as mochilas estão inocentes. Já no que se refere ao "curvar da espinhela” dos adultos a história é outra. De qualquer forma este artigo só aborda aspectos ortopédicos e não se alarga a qualquer crítica a comportamentos sociais ou políticos agora tão em voga…

Ortopedista Infantil, autor do livro Ortopedia Infantil - o fundamental

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