O efeito do “imposto Mariana Mortágua” sobre o PS

Ao assentar no entendimento à esquerda, a governação de António Costa tem uma dimensão experimental que é nova também para o PS. Além da mudança de estratégia de alianças, as mutações programáticas podem estar a acontecer entre os socialistas.

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O PS tem evoluído nas posições programáticas, adaptando-se à circunstância de governar apoiado pela esquerda, mas essas alterações podem mudar a proposta do partido Miguel Madeira (arquivo)

No PS é dado como adquirido que é escasso o campo político para que o Governo possa introduzir no Orçamento do Estado para 2017 a criação de um imposto sobre a propriedade imobiliária que taxe os proprietários mais ricos. A noção dessa dificuldade não é ainda assumida, mas o PÚBLICO sabe que o “imposto Maria Mortágua”— como o baptizou o Expresso — poderá não ver a luz, até porque a forma atabalhoada como foi gerido o seu anúncio e o protagonismo que deu ao Bloco de Esquerda terá deixado “furioso” o líder do PS e primeiro-ministro, António Costa.

O PÚBLICO questionou personalidades do PS sobre até que ponto a adopção de uma medida deste tipo introduz uma alteração na linha programática deste partido e se ela pode aumentar as tensões e divergências internas. Enquanto Ana Catarina Mendonça Mendes e João Galamba não vêem mudanças, elas poderão estar a caminho, segundo João Cravinho, e tornam-se evidentes para Sérgio Sousa Pinto e António Galamba.

A secretária-geral adjunta, Ana Catarina Mendonça Mendes, é peremptória em afirmar ao PÚBLICO que “a medida não está definida”. Uma garantia que é também dada por outro representante da actual linha oficial da direcção, o vice-presidente do grupo parlamentar e porta-voz do PS, João Galamba, que garante: “O imposto não está fechado.”

Ana Catarina Mendonça Mendes alerta mesmo para que “o que está no programa do Governo é que haja um imposto progressivo sobre imóveis”, mas, sublinha, “não há assunção de que vá para a frente”. Considera mesmo que “a medida, que apareceu pela voz de Mariana Mortágua, é uma especulação sobre o que está no programa do Governo”. E, num tom crítico em relação à dirigente do BE que anunciou publicamente a novidade, a número dois do PS afirma: “Discutir a medida nos termos em que tem sido feito, estar a inventar propostas sem ter uma medida concreta é um absurdo.”

Reafirmando a coerência da linha política do PS, Ana Catarina Mendonça Mendes garante que a adopção da progressividade de impostos sobre o património, como o programa do Governo determina, não é sinal de de mudança. Tal como “o PS não se desviou do seu caminho programático e ideológico pelo acordo” que assinou com o BE, o PCP e o PEV.

“Radicais da democracia”

“O que é relevante é que ao longo dos anos toda a gente se esqueceu da nossa declaração de princípios, que diz que somos defensores radicais da democracia. Isto significa que não só somos defensores de uma justiça social, mas que para a cumprir temos de ter justiça fiscal”, advoga Ana Catarina Mendonça Mendes. E conclui: “Não sinto que haja uma alteração programática. Dadas as circunstâncias que vivemos e as consequências dramáticas do período do ajustamento, impõe-se uma alteração de caminho que implica cumprir estes dois princípios.”

Para número dois do PS, “inferir que há um desvio no PS é especulação”. E garante: “Eu, como secretária-geral adjunta, com responsabilidades e a vida de partido que tenho, não deixarei que o PS perca a sua identidade, e a sua identidade está inscrita na sua declaração de princípios.”

Não temendo as consequências internas, Ana Catarina Mendonça Mendes considera que, se esta polémica “convocar o PS para a reflexão ideológica, é evidente que poderá haver divergências, mas já desde os entendimentos com o BE, o PCP e o PEV que isso suscita reflexão dentro do partido, pois ninguém acreditava que eram possíveis acordos à esquerda”. E remata: “Isso não significa que tenhamos alteração ideológica ou programática. Não somos radicais de esquerda, sempre fomos moderados.”

No mesmo sentido, João Galamba nega que esta medida seja “um produto dos acordos à esquerda” e salienta que, embora “este imposto não esteja escarrapachado no programa de governo, o princípio geral da tributação do património está, assim como o reconhecimento do reforço da progressividade”. Mas o porta-voz não nega que, “estando o Governo com apoio de dois partidos à esquerda”, tal facto “facilita o aprofundamento dessa linha, que seria dificultada se o PS tivesse de negociar à direita”.

João Galamba faz questão de frisar que, “mais do que o PS ter mudado a sua natureza, mudaram as circunstâncias e isso facilitou a coerência do partido consigo próprio”. Num momento em que “a situação internacional coloca os partidos sociais-democratas num dilema, o PS reconheceu esse dilema e que a social-democracia tinha de se encontrar consigo e falar para as pessoas”, argumenta. “O PS está a fazer esse caminho, estando a governar com confiança crescente, o que é raro com partidos à esquerda que tendem a desiludir o eleitorado”, diz.

O porta-voz acrescenta que “o PS entendeu que isso [afastar-se da social-democracia] seria o seu fim” e, para o evitar, “procurou uma linha à esquerda, sem ser um partido de protesto ou proclamatório”. Mas alerta para a necessidade de “procurar o equilíbrio, tendo em conta a tensão entre a realidade e os ideais, já que não é possível abandonar nem a realidade, nem as ideias”, frisando que “a esquerda tem de ser pragmática e governar com realidade sem abandonar ideais”.

Quanto ao futuro do PS, João Galamba salvaguarda o caminho já feito e defende que “há uma consequência que é permanente: o facto de ter havido uma legislatura em que o PS trabalhou, negociou, procurou soluções conjuntas à esquerda ficará para sempre e deixará marcas”. E não teme as divergências internas, garantindo: “O que vejo no PS é uma adesão maciça e entusiástica à experiência que estamos a fazer. Há uma ou outra voz crítica, mas é ultraminoritária.”

Desenrascanço e a ideologia

Mas se o discurso dos actuais dirigentes recusa a mudança programática, o dirigente histórico João Cravinho, que sempre integrou a ala esquerda do PS, não é tão definitivo a negar que haja alterações de fundo no PS desde que António Costa fez os entendimentos à esquerda de modo a assegurar a chefia do Governo.Pelo contrário. Cravinho alerta para que “muitas grandes transformações ideológicas em partidos, em situações de grande aperto, muitas vezes começam por problemas como resolver o financiamento e tem esse justificativo”. E afirma: “O que começa como um desenrascanço financeiro leva a transformações ideológicas.” Se tal se vai verificar, “ainda não é perceptível, neste caso”, mas Cravinho presume que “a situação vai evoluir no sentido de o PS se reposicionar”, já que “a evolução futura da política não pode fazer tábua rasa de ter sido feita uma bipolarização esquerda-direita”. Cravinho prevê mesmo: “Em novas eleições, pode um partido — o PS ou o PSD — não ter maioria absoluta. Nestas condições, enquanto o jogo democrático for este, não vejo que o PS liderado por António Costa, se ganhar, venha a tirar como conclusão das eleições que tem de fazer uma coligação com o PSD.”

Referindo-se à tributação sobre o património, Cravinho diz que ela “faz parte de princípios que estavam retóricos no PS, mas não tinham aplicação prática”, só que actualmente “o PS está a reposicionar-se do ponto de vista da pureza dos princípios da social-democracia”. Contudo, não prevê grandes desvios que ponham em causa a matriz social-democrata. E adverte: “Na prática, há que fazer a distinção entre uma posição da esquerda radical anticapitalista, que não se coloca no PS, e a posição da social-democracia avançada, que é constrangedora do capitalismo, mas não anticapitalista.” Daí que conclua que “é natural que o PS evolua para um reposicionamento ideológico, para uma posição de social-democracia avançada”.

Quanto à aplicação interna do imposto, Cravinho alerta para que “há um problema de calibragem, de se distinguir a retórica e o fundo da questão, no que se refere à ideia de deixar de explorar a classe média e de que os ricos paguem o que devem”. Isto porque, sustenta, “o problema é que a fronteira entre os ricos e a classe média é menos marcada em Portugal do que na Inglaterra, por exemplo, e a distância entre os muito ricos e a classe média não é muito acentuada”.

Por essa razão, adverte que “a aplicação de um novo imposto não pode ser atabalhoada, feita de improviso”, já que o Governo “não se pode sujeitar a não acertar no imposto e na sua aplicação”. E comenta: “Dizer que é para oito mil proprietários é pouca gente.” Segundo Cravinho, também é “preciso saber antecipadamente quanto dá esse imposto”. Por fim lembra que esta taxação da propriedade “é um começo”, já que “os mais ricos, recorrendo ao planeamento fiscal agressivo, pagam menos impostos”. E avisa que “aplicar este imposto é rendilhado muito fino”, uma vez que, “do ponto de vista político, tendo em conta a hegemonia da direita, basta um passo mal dado para passar a ser contraproducente”.

Posição análoga em relação à tributação dos mais ricos expressa o deputado Sérgio Sousa Pinto, ex-membro do secretariado de António Costa que rompeu com este por causa dos entendimentos à esquerda. “O problema da tributação dos ricos em Portugal não é um problema de as taxas serem baixas”, afirma ao PÚBLICO. Considera que “até podem fixar a taxa marginal em 99%, para proporcionar uma alegria aos eleitores do BE”. A questão “da tributação da riqueza em Portugal tem que ver com a capacidade efectiva de cobrança do que é devido por causa da evasão fiscal e, sobretudo, por causa da tax avoidance, ou seja, o planeamento fiscal agressivo, montado por fiscalistas pagos a peso de ouro”, considera o deputado.

Sérgio Sousa Pinto admite, assim, que “as pessoas fugirão a este pagamento da mesma maneira que o fazem hoje”, uma vez que “os zero qualquer coisa por cento dos mais ricos não contribuem com os seus impostos para o financiamento do Estado”. Por isso, denuncia: “Elevar as taxas que se lhes destinam é fundamentalmente propaganda.” E advoga: “Se a razão for aumentar a receita do Estado — e seguramente também é essa a razão —, todos os fiscalistas sabem e todos os não fiscalistas desconfiam que a classe média tem de ser atingida por esta alteração fiscal.”

Falando sobre a polémica gerada, Sousa Pinto sustenta que “o BE precisa de negociar este tipo de propostas com o Governo para justificar politicamente o seu apoio a uma política económica conservadora, obcecada com o equilíbrio orçamental”, salvaguardando que a actual política orçamental “não é a política que o PS gostaria de ser forçado a prosseguir, mas é a política ditada pela realidade”.

O milagre de Soares

Sousa Pinto defende, por outro lado, que “esta questão fiscal relacionada com a necessidade de aumentar a contribuição dos mais ricos, em si mesma, não teria o potencial de dividir o PS”. Contudo, é cristalino a considerar que, neste momento, está instalada uma clivagem pela forma como o assunto foi colocado por Mariana Mortágua. “O problema surge quando uma deputada do BE expõe ao PS a mundivisão do Bloco: anticapitalista, antipoupança, antiacumulação”, observa. E não hesita em fazer uma clara demarcação entre o PS e o BE: “Eram esses os pressupostos do socialismo de miséria que o PS derrotou em 1975. O grande milagre, o milagre que Mário Soares operou, foi conseguir trazer para um modelo de sociedade e de economia do tipo ocidental um país de gente descalça, analfabeta, sem electricidade ou saneamento básico.”

Já António Galamba, que integrou o secretariado do ex-líder António José Seguro, afirmou ao PÚBLICO que estão em curso no partido “um conjunto de reorientações estratégicas relacionadas com opções de fundo” e que passam por “medidas que destapam o centro onde estava o PS”. Apontando os responsáveis, António Galamba advoga que estas “são reorientações que têm que ver com o que alguns dirigentes pensam”. E concretiza, defendendo que “há dirigentes do PS, como Pedro Nuno Santos, João Galamba e Pedro Delgado Alves, que têm estado mais próximos do BE do que do PS tradicional”. “Isto, mais tarde ou mais cedo, terá consequências no PS. São posições que reorientam o PS e que nada têm que ver com a sua matriz socialista. E terá avaliação eleitoral já nas autárquicas”, adverte.

António Galamba faz questão de explicar a razão pela qual, no seu entender, não há mais críticas no PS à orientação da liderança de António Costa. “É normal que haja silêncio quando há clima de medo.” E prossegue na acusação: “Quando uma pessoa expressa uma opinião diferente e sente que isso lhe pode trazer consequências profissionais, por exemplo, pensa duas vezes.”

Aprofundando a situação do PS e a razão da falta de contestação, António Galamba considera que houve “desde o início da liderança de José Sócrates uma mudança do perfil do militante”. Traça assim o que entende ser o retrato dos militantes socialistas de hoje: “Para conquistar o poder e mantê-lo, conformam-se com tudo. A conquista e manutenção do poder levam a uma lógica mais pragmática do que ideológica. O mesmo com as alterações de matriz. Algumas são definidas por dirigentes, outras pela necessidade de manter o poder.”

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